Ainda no rescaldo do debate aberto sobre poliamor de há umas semanas...
Uma das ideias que para lá se atirou, vinda de quem estava a assistir, é que o poliamor tem que ver com, fundamentalmente, libertarmos os nossos sentimentos. Logo na altura em que ouvi isto, levantaram-se-me os bichos carpinteiros para dizer alguma coisa em resposta mas, na falta de oportunidade, digo-o aqui que acaba por dar no mesmo.
Antes de mais: discordo. E discordo porque a frase, tal como está enunciada, é demasiado generalista e aponta para o lado docinho e feliz do poliamor, esquecendo convenientemente que nem só as coisas fofinhas e queridas fazem parte dos nossos sentimentos. Em segundo lugar, discordo porque, mais uma vez, este tipo de argumentação dá a ideia - convenhamos, não sei se era ou não o que a pessoa queria realmente dizer, e daí eu afirmar apenas que dá a ideia e não que implica tal coisa - que existem, lá no fundo sentimentos verdadeiros à espera de ser libertados, sentimentos cuja realidade é epistemologicamente una e inquestionável, essencial.
Quanto ao primeiro elemento: a partir de um determinado ângulo, até poderíamos dizer que, ao admitirmos para nós e para outras pessoas a possibilidade de se amar, ao mesmo tempo, mais de que uma só pessoa, nos estamos a libertar dos constrangimentos monogâmicos, e estamos a libertar os nossos sentimentos - id est, a dar-lhes maior latitude de expressão e movimento. E com isto eu estou totalmente de acordo. Mas pode levar-nos também a ignorar o outro lado da questão.
Que lado? O do ciúme. [Pequeno caveat emptor: o uso do ciúme aqui é meramente ilustrativo, não pretendo estabelecer uma relação antitética entre amor e ciúme - pelo menos, não neste post.]
Como muito bem ficou demonstrado pela Lara neste post, quando surge uma situação (quando o frigorífico avaria) é preciso tomar uma série de passos para consertar o frigorífico, senão lá se vai a comida toda desta p'ra melhor. Mas o que é que estes passos para consertar o frigorífico representam? Exacto - trabalho. Esse trabalho tem como objectivo controlar a situação, dirigi-la para onde queremos que vá, através de uma série de operações auto- e hetero-analíticas cujo propósito final é, neste caso, controlar os ciúmes.
Ainda assim, seria possível refutar: «Ah, mas por outro lado, o amor liberta-se!» (Estou aqui a saltar para a segunda objecção seguindo um caminho mais longo.)
Então, pergunto eu, e todo o trabalho que a sociedade teve ao nos tentar doutrinar de forma hetero-mono-normativa? O facto de vivermos poliamorosamente não implica que nos imunizámos face à sociedade de onde viemos. Muito pura e simplesmente, não funciona assim. Os nossos condicionamentos sociais não desaparecem como que por magia só porque resolvemos fazer uma ou mil coisas diferentes. Isso quer dizer, sem dúvida, que estamos a resistir mais eficientemente a esses condicionalismos, por qualquer que seja a razão, mas não que eles deixaram de nos afectar. Assim, também o nosso amor, aquilo que é entendido como amor, e tudo o que a ele é associado, é trabalhado e contestado pela pessoa poliamorosa, que pretende tomar para si o controlo do que é "amar" e de como se pode "amar". O poder - aquilo que permite controlar - não se suspende ou anula, simplesmente muda o seu rumo, mas continua a ser exercido, e esta(s) definição(ões) continuam a digladiar-se e a complementar-se com outras, de outras fontes.
Passo agora para a minha segunda objecção, em pleno: afinal de contas, que amor é esse? Aquilo que o poliamor pretende fazer, parece-me, é precisamente questionar a definição vigente de "amor" por outra, diferente, mais abrangente em termos conceptuais. Ora, esta própria tentativa é reveladora de um detalhe, quer ela seja ou não aceite ou bem-sucedida: que a definição de "amor", "ciúmes", ... enfim, de sentimentos, é contextual, arbitrária, social.
Ouço já gritos furiosos: «Isto é uma reificação da postura racionalista androcêntrica cartesiana!»; «Isto ignora o trabalho do António Damásio e as mais recentes descobertas da neuro-psicologia!». Calma, calma...
Não é nada disso que eu quero dizer. O que eu quero dizer é que, muito embora seja verdade que há um cerne de emoções a funcionar em pleno no nosso cérebro, que condiciona a nossa racionalidade, que a tinge, que opera mais rapidamente do que ela, esses sentimentos - na verdade, essas reacções neuro-químicas - não são aquilo a que comummente nos referimos quando falamos de sentimentos. Da mesma forma que essas reacções enquadram e interpelam o nosso processamento neuronal racional, também o nosso contexto social dá um colorido, uma interpretação, uma profundidade e complexidade ao "amor" que ultrapassa esse mesmo elemento mais básico, elementar, fisiológico.
De forma que não existe, afinal, nenhum verdadeiro amor para libertar. Não existe nada lá no fundo de nós à espera de se soltar e de vir cá para fora. Existe apenas uma (na verdade, várias) superfície que vamos moldando, e que nos vão moldando, uma dobra que vamos invaginando. É sobre essa superfície que pomos as mãos, é nessa superfície que tentamos exercer o nosso poder, o nosso controlo.
Portanto, o poliamor não é libertação, tal como não é amoralidade (se fosse uma coisa, teria de ser a outra, também). O poliamor é a substituição de um conjunto de regras, valores e posturas por outro. Uma substituição que requer, na verdade, o uso de quantidades inusitadamente grandes de (auto-)controlo pessoal e emocional - parte do que está contido na ideia do cuidado do self. O poliamor é ainda moral, no sentido em que instrui para um conjunto de mores, que supõe um determinado conjunto de regras. O poliamor necessita de ser pensado dentro das estruturas de poder inter-relacional (daí a importância da comunicação!), e não fora de uma qualquer prisão da qual o sujeito poliamoroso se liberta. Se se libertasse, não seria isso mesmo: sujeito.
Uma das ideias que para lá se atirou, vinda de quem estava a assistir, é que o poliamor tem que ver com, fundamentalmente, libertarmos os nossos sentimentos. Logo na altura em que ouvi isto, levantaram-se-me os bichos carpinteiros para dizer alguma coisa em resposta mas, na falta de oportunidade, digo-o aqui que acaba por dar no mesmo.
Antes de mais: discordo. E discordo porque a frase, tal como está enunciada, é demasiado generalista e aponta para o lado docinho e feliz do poliamor, esquecendo convenientemente que nem só as coisas fofinhas e queridas fazem parte dos nossos sentimentos. Em segundo lugar, discordo porque, mais uma vez, este tipo de argumentação dá a ideia - convenhamos, não sei se era ou não o que a pessoa queria realmente dizer, e daí eu afirmar apenas que dá a ideia e não que implica tal coisa - que existem, lá no fundo sentimentos verdadeiros à espera de ser libertados, sentimentos cuja realidade é epistemologicamente una e inquestionável, essencial.
Quanto ao primeiro elemento: a partir de um determinado ângulo, até poderíamos dizer que, ao admitirmos para nós e para outras pessoas a possibilidade de se amar, ao mesmo tempo, mais de que uma só pessoa, nos estamos a libertar dos constrangimentos monogâmicos, e estamos a libertar os nossos sentimentos - id est, a dar-lhes maior latitude de expressão e movimento. E com isto eu estou totalmente de acordo. Mas pode levar-nos também a ignorar o outro lado da questão.
Que lado? O do ciúme. [Pequeno caveat emptor: o uso do ciúme aqui é meramente ilustrativo, não pretendo estabelecer uma relação antitética entre amor e ciúme - pelo menos, não neste post.]
Como muito bem ficou demonstrado pela Lara neste post, quando surge uma situação (quando o frigorífico avaria) é preciso tomar uma série de passos para consertar o frigorífico, senão lá se vai a comida toda desta p'ra melhor. Mas o que é que estes passos para consertar o frigorífico representam? Exacto - trabalho. Esse trabalho tem como objectivo controlar a situação, dirigi-la para onde queremos que vá, através de uma série de operações auto- e hetero-analíticas cujo propósito final é, neste caso, controlar os ciúmes.
Ainda assim, seria possível refutar: «Ah, mas por outro lado, o amor liberta-se!» (Estou aqui a saltar para a segunda objecção seguindo um caminho mais longo.)
Então, pergunto eu, e todo o trabalho que a sociedade teve ao nos tentar doutrinar de forma hetero-mono-normativa? O facto de vivermos poliamorosamente não implica que nos imunizámos face à sociedade de onde viemos. Muito pura e simplesmente, não funciona assim. Os nossos condicionamentos sociais não desaparecem como que por magia só porque resolvemos fazer uma ou mil coisas diferentes. Isso quer dizer, sem dúvida, que estamos a resistir mais eficientemente a esses condicionalismos, por qualquer que seja a razão, mas não que eles deixaram de nos afectar. Assim, também o nosso amor, aquilo que é entendido como amor, e tudo o que a ele é associado, é trabalhado e contestado pela pessoa poliamorosa, que pretende tomar para si o controlo do que é "amar" e de como se pode "amar". O poder - aquilo que permite controlar - não se suspende ou anula, simplesmente muda o seu rumo, mas continua a ser exercido, e esta(s) definição(ões) continuam a digladiar-se e a complementar-se com outras, de outras fontes.
Passo agora para a minha segunda objecção, em pleno: afinal de contas, que amor é esse? Aquilo que o poliamor pretende fazer, parece-me, é precisamente questionar a definição vigente de "amor" por outra, diferente, mais abrangente em termos conceptuais. Ora, esta própria tentativa é reveladora de um detalhe, quer ela seja ou não aceite ou bem-sucedida: que a definição de "amor", "ciúmes", ... enfim, de sentimentos, é contextual, arbitrária, social.
Ouço já gritos furiosos: «Isto é uma reificação da postura racionalista androcêntrica cartesiana!»; «Isto ignora o trabalho do António Damásio e as mais recentes descobertas da neuro-psicologia!». Calma, calma...
Não é nada disso que eu quero dizer. O que eu quero dizer é que, muito embora seja verdade que há um cerne de emoções a funcionar em pleno no nosso cérebro, que condiciona a nossa racionalidade, que a tinge, que opera mais rapidamente do que ela, esses sentimentos - na verdade, essas reacções neuro-químicas - não são aquilo a que comummente nos referimos quando falamos de sentimentos. Da mesma forma que essas reacções enquadram e interpelam o nosso processamento neuronal racional, também o nosso contexto social dá um colorido, uma interpretação, uma profundidade e complexidade ao "amor" que ultrapassa esse mesmo elemento mais básico, elementar, fisiológico.
De forma que não existe, afinal, nenhum verdadeiro amor para libertar. Não existe nada lá no fundo de nós à espera de se soltar e de vir cá para fora. Existe apenas uma (na verdade, várias) superfície que vamos moldando, e que nos vão moldando, uma dobra que vamos invaginando. É sobre essa superfície que pomos as mãos, é nessa superfície que tentamos exercer o nosso poder, o nosso controlo.
Portanto, o poliamor não é libertação, tal como não é amoralidade (se fosse uma coisa, teria de ser a outra, também). O poliamor é a substituição de um conjunto de regras, valores e posturas por outro. Uma substituição que requer, na verdade, o uso de quantidades inusitadamente grandes de (auto-)controlo pessoal e emocional - parte do que está contido na ideia do cuidado do self. O poliamor é ainda moral, no sentido em que instrui para um conjunto de mores, que supõe um determinado conjunto de regras. O poliamor necessita de ser pensado dentro das estruturas de poder inter-relacional (daí a importância da comunicação!), e não fora de uma qualquer prisão da qual o sujeito poliamoroso se liberta. Se se libertasse, não seria isso mesmo: sujeito.
7 comentários:
Olá Daniel
Acho que fui eu que fiz o comentario.
Escrevi-te uma resposta muito bonitinha mas o computador comeu-a, vou tomar como um sinal do universo :)Vou sou esclarecer que sentimentos e emoções não são bonitinhos nem feios, são autênticos ou falsos... e o ciúme e uma emoção composta por medo e raiva.
A questão é: quem define a verdade ou a falsidade dos sentimentos? Será que sentimentos e emoções são a mesma coisa? Será que medo e raiva são as únicas coisas que compõem o sentimento conhecido por "ciúme"?
A partir do momento em que definimos socialmente um sentimento, então o sentimento carece de uma identidade própria, mas tem apenas uma contigência que nos deixa falar (algumas coisas) sobre ele.
E acima, ou para além destas coisas, será adequado falar de mais ou menos liberdade no que toca a sentimentos? Porque a minha questão principal é essa - o poliamor é mais livre? Como é que uma coisa que requer um constante trabalho de auto-controlo emocional se associa a liberdade? Há uma certa aporia, aí, que creio ter analisado aqui...
Não sendo um especialista no estudo de sentimentos (ou de qualquer outra coisa) :-D, creio que a raiva já um um subproduto do que constitui o ciúme.
Já que falaste no Damásio, ele diferencia sentimentos e emoções.
;-)
--
Sobre a liberdade, não penso que esta esteja em ter pouco trabalho ou maior ou menor controlo.
Eu identifico a liberdade com a capacidade para executar um certo número de escolhas entre as possíveis.
No fundo, uma questão quantitativa de opções: quantas mais, maior a liberdade, quantas menos, menor.
0 opções = 0 liberdade.
Nesse sentido, a monogamia e o poliamor podem ter o mesmo valor de liberdade!
:-D
António:
Sim, ele diferencia e eu tentei manter essa distinção ao longo do texto, mas se fosse entrar por uma explicação da neurofisologia... bem, digamos que este texto já tem duas vezes o tamanho máximo :P
Quanto à forma como defines liberdade, ela pode ser correlacionada com aquilo que eu dizia (ou seja, constrangimentos de poder. Se alguém exerce determinado poder sobre mim, directa ou indirectamente, eu sinto-me menos capaz de tomar algumas escolhas como viáveis, e mais capaz de tomar outras.
Claro que concordo contigo no sentido em que poly e mono podem ter o mesmo grau de liberdade, mas isso vem precisamente de encontro ao meu ponto: o poliamor não é simplesmente mais livre ou menos livre, é livre de forma diferente, desloca as suas restrições para outros campos, não as elimina.
Constrangimento de poder, imposto por terceiros e, como dizes(?) no fim do teu comentário, por nós!
:-D
--
Entrar nos pormenores de emoção / sentimento do ponto de vista do Damásio dava pano para mangas.
Gosto do que ele escreve, mas acho os seus livros progressivamente mais difíceis de perceber!
:-D
Não sendo especialista de nada (nem se pretende aqui)mas fazendo uma abordagem sociológica coloco em questão o seguinte:
os sentimentos têm veracidade ou falsidade? nem uma nem outra, estão para além das raízes de juízos de valor; o medo e a raiva fazem parte, essencialmente, do ciúme sim, e diria também a insegurança que é um medo disfarçado e a raiva o descontrole ou a falta deste (auto-controle; havendo, e há, correlação entre escolhas/opções e liberdade quantas mais mais liberdade, inclusivé a liberdade d enão se escolher nenhuma ou de construir uma opção que não exista...mas uma não implica necessariamente a outra (escolha/liberdade).
Vítor Hugo
Vítor Hugo:
Exacto, a fundamentação básica do meu texto passa pela impossibilidade de uma falsidade ou veracidade última dos sentimentos, que nos impede, afinal de contas, de avaliar plenamente do que se fala. Tal como a possibilidade de escolher nem sempre vem com a liberdade, ou a liberdade das escolhas: se eu sou livre de fazer um certo número de escolhas mas não mais do que essas, então algo se passa.
Sempre brinquei com a ideia de que "poliamor é a escolha de não escolher", de facto. :)
Obrigado pelo comentário.
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