quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Um Ano de Poliamor

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Há 3 dias, eu e o meu companheiro fizemos um ano de namoro.
Hm, um ano não é grande coisa, né? Passa a correr. Ainda para mais se estou a trabalhar e os dias passam mais depressa do que consigo processar. A maioria dos casais que conheço tem mais de um ano de namoro, neste momento. Um ano é average, o checkpoint por onde passa qualquer relação "séria". Certo? Já tive outras relações que chegaram a esse marco.

Com um detalhe: pela primeira vez, nós não somos um casal. Estamos numa relação não-monogâmica ética que funciona com o consentimento de todas as pessoas afectadas. E por ser a minha primeira relação fora da conformação mononormativa, este aniversário não é um qualquer.

Um ano de poliamor. O primeiro aniversário da minha primeira relação poliamorosa.

E dizer isto por si só não chega.
Não é apenas o mesmo que dizer "fiz um ano de namoro, só que além de nós podemos estar/estamos com outras pessoas". Poliamor não é sinónimo de "muitxs namoradxs". A forma de estar no poli, como em qualquer outra relação, muda de pessoa para pessoa. E o impacto que descobrir esta orientação relacional teve em mim foi também único, e poucas pessoas o compreendem (conto pelos dedos de uma mão as que conheço e sei que passaram por algo semelhante).

Toda a minha vida fui confrontada com situações em que me sentia atraída, interessada ou até mesmo apaixonada por mais do que uma pessoa em simultâneo. Inclusive quando tinha namorado. Claro está que nunca falei disto a ninguém. Não é propriamente fácil, se considerarmos que estou inserida numa sociedade heteromononormativa e a mínima menção de desconforto com o facto de estar com alguém sem saber muito bem porquê era um gatilho para um chorrilho de julgamentos tais como "isso não é amar a sério", "tu fartas-te muito facilmente das pessoas" ou "isso é normal, é só uma fase, depois passa".

Sabes qual é a sensação de passares mais de dez anos da tua vida convencidx de que algo em ti não funciona bem e deves estar estragadx/ter um problema fisiológico/psicológico, só porque não te identificas com aquilo que te é vendido como "amor verdadeiro"? Sabes qual é a sensação de duvidares da tua própria capacidade de amar porque a forma como o fazes não é "normal"? E sabes qual é a sensação de teres noção de que não és normal, mas como não tens nome para aquilo que estás a sentir e mais ninguém à tua volta o sente ou partilha contigo não sabes como falar disso? Tudo porque não tens um nome, uma palavra, para chamar ao sentimento/situação. Tudo porque não conheces os nomes das coisas que são constantemente apagadas e invisibilizadas, tidas como aberrantes, anti-naturais e, em alguns casos, criminosas.

O meu actual companheiro foi a primeira pessoa a tirar-me esse peso dos ombros, a aliviar-me essa asfixia. Com essa pessoa, pude exclamar "Ah! Existe um nome para o que estou a sentir! Não sou a única!" - não me interpretes mal, no entanto. A primeira vez que vi a palavra poliamor, não sabia nada sobre o assunto e achei que era uma parvoíce que nunca poderia resultar - sabes qual é a sensação de estares tão convencidx de que se não sentes como é suposto sentir tens de te obrigar a sentir até conseguires ser normal? Sim, estava em auto-negação. Eu era a pessoa mais ciumenta que conhecia (qualquer ex-namorado meu pode confirmar as minhas crises de ciúmes).
Quer isto dizer que as minhas relações anteriores foram uma farsa? Wow, calminha lá. Longe disso. Precisamente por gostar tanto das pessoas com quem estava e achar que a ideia de namoro convencional como a única forma de namoro sério estava certa, sentia-me horrível por começar a gostar de mais alguém ao mesmo tempo e não aguentava continuar nessa relação.
Era excruciante estar com uma pessoa, gostar dela e de outra ao mesmo tempo, e não poder partilhar isso com ninguém porque... não era "suposto" isso acontecer. Era também excruciante não perceber o que se passava comigo, não perceber porque é que eu funcionava de outra maneira.

Até que um dia comecei a falar com ele, e pela primeira vez me foi dito que não existe uma forma correcta de amar. Não há uma check list de elementos que têm de existir naquilo que sentes para se poder chamar amor ou amizade, tal como uma relação íntima não se distingue nem se limita apenas por ter uma componente romântica associada a uma componente sexual. E por tudo isto, eu não estava "estragada" nem a "funcionar mal" - simplesmente não me identificava com a monogamia.
Tal como não há nada de errado com alguém que nunca se apaixonou, ou com alguém que ama a mesma pessoa há 30 anos e nunca se apaixonou por mais ninguém, ou mesmo com quem nem sequer tem interesse em ter relações íntimas nem sexuais nem românticas. Ninguém tem o direito de me dizer que o que estou a sentir está errado ou tem este ou aquele nome porque ninguém melhor do que eu própria sabe o que sinto.

E depois de me começar a conhecer melhor e aceitar-me a mim mesma como sou, coisas extraordinárias começaram a acontecer. Era como se tivesse esfregado dos olhos uma névoa teimosa e as coisas começassem aos poucos a ficar mais definidas e claras. Para chegar onde estou neste momento, passei por muitos momentos de dúvida, de auto-questionamento, de frustração, de sofrimento, de mudança, de adaptabilidade, de descoberta. Acho piada quando dizem "just be yourself" quando eu, para poder ser eu mesma, tive de mudar. Ainda estou nesse processo, ainda sou um rebento verde - e mais pequena me sinto quando penso nas relações poliamorosas que existem há décadas, com pessoas que trabalham arduamente para a visibilidade desta conformação relacional. E, ainda assim, é fantástico conhecer-me melhor do que nunca, e descobrir que consigo sentir compersão pelas companheiras do meu companheiro. Não vim dar numa de proselitista e pregar como o poliamor é superior às outras formas de relação - mas numa relação monogâmica nunca teria a oportunidade de fazer amizades com punaluas. E é aqui que, para mim, o poli diverge da descrição de uma simples relação romântica mas com várias pessoas - todas as pessoas que fazem parte da constelação da qual também sou parte têm relações diferentes umas com as outras. O que o meu companheiro tem comigo tem uma dinâmica diferente da que tem com outra companheira, assim como a minha relação com cada uma delas é diferente, da mesma forma que a maneira como elas se relacionam entre si é única de pessoa para pessoa. Para além disto, todxs lutamos para equilibrar diferenças de poder. Todos comunicamos e buscamos o consentimento de todos - e aqui entram estratégias de comunicação mais complicadas, porque não é fácil conciliar consentimento, com comunicação, com os limites de toda a gente. Aprendi não só a falar mais, mas melhor. Aprendi a distinguir os momentos em que é preciso comunicar dos momentos em que é preciso dar espaço. E continuo a aprender.

Para mim, ser poliamorosa não é apenas poder amar mais pessoas. É também poder amar de mais maneiras diferentes. É ter o poder de conhecer os meus próprios limites e dá-los a conhecer sem recear ser julgada, porque todas as partes envolvidas sabem que toda a gente tem necessidades diferentes. É respeitar e sentir-me respeitada, aceite, compreendida e amada de uma forma que nunca senti antes. É poder ter uma postura com que me identifico realmente sem ter medo de ser reprimida outra vez. É poder falar sem ter medo de ser silenciada. É poder sentir-me livre - porque para mim ser livre é poder escolher.

É, além de algo intrínseco, a minha escolha.

Um ano de ser mais eu. Um ano de ser mais feliz. Um ano de fazer aquilo que escolhi fazer.