Motivado por uma série de comentários num post recente, deixo-vos um excerto de um texto meu:
O poliamor, na sua base teórica, mostra-nos um tipo de relacionamento que depende fortemente de um sujeito individualizado que marque as suas regras e as suas determinações mas que, ao mesmo tempo, as discuta e as negoceie com alguém que se apresenta como seu igual num contexto que não tem o peso histórico do casamento e suas obrigações associadas – e que portanto contém a possibilidade e a expressão de uma pura relação e de um amor confluente, no qual também se pode observar a plasticidade sexual e que leva a um desafiar constante de estereótipos e papéis de género (Giddens, 1993).
Porém, poderia argumentar-se que a dificuldade de fazer coincidir de forma harmoniosa dois indivíduos profundamente individualizados torna-se tanto mais complexa quantos mais indivíduos forem adicionados à situação, numa espécie de escalada da complexidade. Mas – e fazendo uma leitura que se admite extremamente selectiva do que Georg Simmel (2001) disse sobre esta questão – pode também dizer-se que “a díade constituía ao mesmo tempo a primeira síntese […] e a primeira divisão […]. A entrada em cena do terceiro significa agora transição, conciliação, abandono das contradições absolutas”. Ao caracterizar as relações consideradas mais “sagradas”, como o próprio lhes chama, Simmel diz também que, a dois, “cada um dos dois sabe que o outro só pode apoiar-se nele, e em nenhuma outra pessoa senão nele”. Ora, dois elementos se destacam no meio disto: por um lado, os termos usados para descrever a típica relação diádica assemelham-se bastante à noção de relação codependente que Giddens (1993) convoca para descrever as relações íntimas prejudiciais. Não obstante a necessidade de atenuar em parte a aplicação do que Simmel diz neste contexto, a verdade é que a procura do Eu no Tu a que se assiste dentro do paradigma heterossexual monógamo tem sempre em si uma parte desta imposição de dependência, tão contrária às marcas da individualização. Por outro lado, a questão da dinâmica que a tríade instala (e aqui a tríade deve ser entendida como o próprio autor a entende, ou seja, tudo o que tenha mais do que dois elementos) permite um exercício do poder mais disperso e uma flexibilização dos papéis dentro da relação que a configuração dualista não permite ou, na melhor das hipóteses, torna mais complexo.
Giddens, A. (1993). The Transformation of Intimacy: Sexuality, Love, and Eroticism in Modern Societies (1.ª ed., p. 216). Stanford University Press.
Simmel, G. (2001). Influência do Número das Unidades Sociais Sobre as Características das Sociedades. Em Teorias Sociológicas - Os Fundadores e os Clássicos (3.ª ed., Vol. 1, pp. 551-558). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
6 comentários:
A ideia que tenho sobre os relacionamentos a "+ que 2", é que o maior obstáculo à sua concretização com sucesso, é também a sua maior virtude:
É preciso mais maturidade da parte dos intervenientes.
É que a coisa não vai lá com boas intenções e lindas teorias :-D
O que me preocupou ao escrever este post não tem que ver com as dificuldades ou não das relações a mais do que dois. Porque maturidade é algo essencial em todos os tipos de relações; e na minha experiência, boas intenções são absolutamente indispensáveis para fazer relações poly funcionar.
Aqui, a minha preocupação era tentar compreender se existe alguma diferença fundamental na estrutura social de uma relação que envolva mais do que duas pessoas, seja ela que tipo de relação for. Claro que, depois, há que ver que se formam laços duais em qualquer relação, mesmo que em triângulo, e que uma relação a mais do que duas pessoas resulta da interacção de todas as iterações possíveis entre essas pessoas, segundo o seu modelo relacional (o mesmo é dizer que uma relação em "V" não requer exactamente as mesmas questões a serem resolvidas que uma relação em triângulo, por exemplo).
"Maturidade" e "boas intenções". Ufa, é um privilégio reunir tamanha oportunidade de crescimento.
Daniel, penso que apontaste claramente a especificidade da dinâmica interna de uma relação poli, relativamente às outras mais "exclusivamente duais", de uma forma positiva e contrastante com "a mitologia da catástrofe" de que se falou noutro post.
Bj
Daniel:
Concordando contigo, eu não ponho a questão em termos de maturidade mas de "mais (ou maior?) maturidade".
Para mim, que não sou politicamente correcto e por vezes tenho um discurso um pouco agressivo para a malta mono, ser-se "não-monogâmico" não é uma questão de gosto, tipo: gostas mais de laranjas? ah! eu gosto mais de morangos!
Tipo, gostos não se discutem!
Ser-se "não-monogâmico", não ter sentimento de posse, desejo de exclusividade, ciúme... é uma questão de (maior) maturidade!
Isto é o que se chama, puxar a brasa à nossa sardinha :-D
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E já agora, compreendeste se havia alguma diferença fundamental? E quais eram?
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No que diz respeito a relacionamentos duais, eu penso que também aí existem as "questões" de triângulos & V, mesmo sem a questão do sexo (que vem "complicar" a coisa) e que mesmo sem o sexo, é elemento gerador de muita tensão num casal.
Mas como se capitaliza muito no sexo, existe a tendência, creio eu, de não pensar tanto por esse ângulo.
António:
O problema é que, apesar de existir apenas um ideal de monogamia, a verdade é que existem várias monogamias, e não apenas uma. Essa é a riqueza de alguns dos trabalhos de investigação mais recentes: a ideia de que existe um comportamento normal que é efectivamente seguido por muita gente deixa passar ao lado o facto de que cada pessoa faz as suas próprias adaptações. Uma relação pode ser monógama e ainda nassim não ser necessariamente normativa ou desigual em termos de género.
Quanto às diferenças fundamentais, este texto é precisamente sobre isso. As que "eu" encontrei, nomeadamente as que o Simmel encontrou, têm que ver com o que está no segundo parágrafo, que posso resumir da seguinte forma:
- fim das dualidades e das contradições absolutas;
- fim da dependência exclusiva de um único elemento familiar.
Eu também não vejo a monogamia como uma relação necessariamente desigual em termos de género e se tenho algum respeito pela coisa é porque, quando bem praticada, existe paridade entre as partes. O que não acontece na poligamia.
Obrigado pela explicação
:-)
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