A semana passada deixei, a modo de cliff-hanger, a referência a um elemento que faltava criticar no que toca à normatividade das relações consideradas "normais" (passe-se a redundância, vá lá). É uma das coisas que o texto da outra semana menciona: a ingerência de Estado nas relações.
Já vem de muito longe a preocupação estatal com a procriação. Para um país que precisa de se industrializar, que precisa de mão-de-obra à moda proletária, os filhos são uma preocupação fundamental. Porque é que vemos tanta preocupação com as medidas natalistas actualmente, e que já tem tradição? Porque o Estado precisa - ou assim se crê - de regular a sua própria solvência futura, assegurando a disponibilidade de uma matéria-prima fundamental: pessoas. Este movimento político funciona como retórica de legitimação para que uma instituição penetre o corpo dos seus cidadãos - transforma-se numa biopolítica. Claro que parte deste
movimento pode ser - e é - utilizado também para controlar que tipo de cidadãos podem ou não fazer parte deste movimento de reprodução e formatação de corpos. Assistimos a isso recentemente: a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo não foi acompanhada de direitos de parentalidade para pessoas do mesmo sexo, ou direitos de adopção, precisamente porque por detrás da biopolítica está um enorme potencial para a segregação com base no corpo. Através desta decisão, alguns corpos são julgados mais competentes para reproduzir e formar novos corpos, do que outros.
movimento pode ser - e é - utilizado também para controlar que tipo de cidadãos podem ou não fazer parte deste movimento de reprodução e formatação de corpos. Assistimos a isso recentemente: a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo não foi acompanhada de direitos de parentalidade para pessoas do mesmo sexo, ou direitos de adopção, precisamente porque por detrás da biopolítica está um enorme potencial para a segregação com base no corpo. Através desta decisão, alguns corpos são julgados mais competentes para reproduzir e formar novos corpos, do que outros.
No entanto, vale a pena fazer a pergunta: será que o Estado tem alguma coisa que ver com as relações pessoais, afectivas e sexuais, num mundo em que a reprodução está cada vez mais tecnologicamente mediada e se encontra cada vez mais desligada das outras potencialidades que advêm do sexo? Não será falacioso que seja uma instituição nacional a delimitar o que eu posso ou não fazer "na cama", com o meu corpo? De quem é, afinal, o meu corpo? Que forças sócio-políticas se congregam para proceder à gestão do meu corpo? E quando eu falo sobre o que se faz "na cama", estou a ser bastante literal. Olhai para um mapa que lista os sítios onde a sodomia consensual é crime, aqui. Esta era a situação dos E.U.A. (até 2003) onde, em alguns casos, até entre parceirxs heterossexuais era criminalizada.
Da mesma forma, porque há-de o Estado regular as minhas relações amorosas? Porque há-de ser o Estado a delimitar qual o número de pessoas que têm um certo tipo de privilégios em relação à minha pessoa (como, por exemplo, o direito de tomar decisões médicas por mim em caso de impossibilidade da minha parte)? Afirmou-se, durante as diatribes em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que a legitimação destas uniões iria levar ao casamento "polígamo". Se trocarmos - prefiro! - "polígamo" por não-monógamo, a minha pergunta é: qual o problema? Ou antes, de novo: que legitimidade existe da parte do Estado para o regular? Se o Estado obtêm dos seus cidadãos a legitimidade para poder agir em nome destes, e se uma parte destes deseja algo que não afecta negativamente os outros, porque há-de ser semelhante coisa proibida?
Não gosto de usar bolas de cristal, mas espero - quase que prevejo - que uma luta poliamorosa em torno do casamento será uma luta pela despolitização e desregulamentação das vidas amorosas, sexuais, biológicas. Uma luta contra a instituição de regras injustas, infundadas, perniciosas.
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