Continuando a partir do post da semana passada... E também para honrar algumas das perguntas da Marquesa do Sado...
Não espantará ninguém se se afirmar que o casamento é um contrato. Um contrato que, no entanto, parece transformar as pessoas em objectos, capazes de ser possuídos por uma outra pessoa-objecto. Já não será novidade para muita gente que não sou propriamente amante da instituição do casamento. Mas o post da semana passada reforçava precisamente a importância do estabelecimento de um contrato - naquele caso, de um contrato contra-sexual (novamente, não confundir com anti-sexual).
É preciso então, para que isto não se transforme numa simples contradição nos termos, definir alguns dos elementos básicos de cada um dos contratos, e porque é que a defesa de um tipo pode coexistir com o pedido de abolição de outro.
O casamento, como instituição de longa data, enferma de uma longa vida de maus hábitos e vícios. Durante boa parte da história recente do casamento heterossexual monógamo normativo, tal como o conhecemos actualmente, este contrato era vitalício, e quase nada revogável (revogações essas que, regra geral, beneficiavam os homens em detrimento das mulheres). Era portanto um contrato sem cláusula de rescisão voluntária - uma prisão. Prisão essa estrategicamente desenhada para a transformação do corpo feminino numa fábrica de produção de linhagem ou, se preferirem, de produção da passagem da propriedade privada por linha patriarcal, biologicamente sustentada. (Já referi algo sobre este ponto noutro sítio.)
O casamento normativo era também baseado numa visão romântica do amor (pensem no Romantismo, especificamente, como escola de pensamento e estética), que apela a uma vivência co-dependente do amor, uma vivência que assenta na visão de que cada sujeito não é realmente autónomo ou completo se não estiver incluído numa relação, que é a relação que valida e dá sentido à existência do sujeito. (Novamente, já abordei este tópico aqui.)
Por fim, uma série de mecanismos subjacentes ao dispositivo da aliança, pretendiam a naturalização das relações. Ou seja: as coisas, tal como são, são-no de forma natural, e não poderiam ser de outra forma (o mesmo é dizer-se que o que é de outra forma é anormal, aberrante). Isto leva a uma aceitação que acaba por ser cega, em que o contrato des-aparece (deixa de aparecer, esconde-se, não é revelado): o equivalente a assinar um acordo em que não se sabe realmente quais as alíneas que dele fazem parte (a chamada "letra miúda", digamos assim).
Na verdade, um outro ponto faltaria aqui enunciar, mas esse fica para outro dia, porque já não tem que ver com o carácter estritamente subjectivo da questão contratual do casamento.
[Caveat emptor: O meu uso de "normativo", "tradicional", etc., não é apenas decorativo. Podem existir casamentos em que se verifica igualdade de género, podem existir casamentos que fogem completamente a relacionamentos co-dependentes... Mas originalmente, a instituição não foi desenhada e pensada assim e durante muito tempo não foi sequer executada assim. E essas práticas e ideais entranham-se na cultura, reproduzem-se, têm os seus efeitos, mas também se alteram e são alterados.]
Nota: a palavra do dia do dicionário on-line Priberam de hoje é "galdério". Sempre algo digno de nota para um grupo de pessoas que se diverte a ler um livro em que a galderice impera (The Ethical Slut.)
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