Falava eu há umas semanas de encontrarmos a antítese da pura relação para percebermos afinal qual é o sentido da pura relação e, mais ainda, porque é que a monogamia não é essa antítese.
Regressemos então ao mesmo livro para retirar um outro conceito que Giddens reformula:
Pode parecer uma descrição complicada, mas darei dois exemplos que rapidamente esclarecerão o assunto - uma expressão popular e um detalhe presente em contos de fadas.
"Tu és a minha cara-metade."
Quantos de nós já não ouvimos esta expressão? Pode parecer muito doce, até, mas comporta três consequências fundamentais. A primeira é que, se alguém é uma "cara-metade", isso quer dizer que é também apenas meia-cara; o mesmo é dizer, cada pessoa é apenas meia pessoa, incompleta, em falta, que se esfrega no limite do surreal. Segue-se, em segundo lugar, a ideia da ilusão da completude - que a outra metade vem "encaixar", qual puzzle, e criar uma unidade (uma perfeição, portanto) que não deixa espaços em branco, que é tudo. A isto também se segue, em terceiro lugar, que o importante deixa de ser a outra pessoa, para passar a ser a relação - relação essa que é fusional, que pretende apagar as fronteiras entre sujeitos (quiçá destruir ambos!) para transformar dois meio sujeitos numa relação. Magia das magias, 1+1=1. Claro que, se usei aqui a relação a dois, foi apenas como exemplo mais simples - poderíamos ao invés disso usar 1+1+1+2+1=1, e a história não seria diferente, a base de raciocínio seria exactamente igual. Porém, convém não esquecer que a "cara-metade" é, acima de tudo, o ex libris do ideal romântico (no sentido oitocentista do termo).
Como forma de demonstrar o ponto acima, chamo a atenção para os contos de fadas. "E viveram felizes para sempre. O fim."
Esta felicidade toda parece ser inquestionável - mas atentemos mais de perto. O jogo que se desenrola nos contos de fadas é, novamente, o jogo da dependência. A princesa (encantada) depende da salvação do príncipe, e o príncipe só tem como objectivo principal conquistá-la. Toda a trama se processa em torno da conquista. E depois, perguntarão? Bem, depois, para todos os efeitos práticos, toda a gente morre. Porque a história termina com a união do casal, todo o resto do mundo se revela como apenas a base de suporte para uma relação que engole tudo à sua volta, auto-fágica mesmo, e cujo começo marca também o seu fim (ou a sua crio-preservação) e, consequentemente, o fim dos seus actores.
E voltamos então à pergunta: o que representa para o sujeito a pura relação? Como pode o sujeito fugir da sua fusão e dissolução na relação (codependente)?
Continua...
Índice
A pura relação e o poliamor - I
A pura relação e o poliamor - II
Regressemos então ao mesmo livro para retirar um outro conceito que Giddens reformula:
Uma pessoa codependente é alguém que, para manter um certo nível de segurança ontológica, precisa que outro indivíduo, ou conjunto de indivíduos, definam as suas necessidades [...]. Uma relação codependente é uma relação em que um indivíduo está psicologicamente preso a um parceiro/a cujas actividades são governadas por uma qualquer impulsividade. Designarei por relação fixada [original: "fixated"] aquela em que a relação em si mesma é o objecto da adição. - Anthony Giddens
Pode parecer uma descrição complicada, mas darei dois exemplos que rapidamente esclarecerão o assunto - uma expressão popular e um detalhe presente em contos de fadas.
"Tu és a minha cara-metade."
Quantos de nós já não ouvimos esta expressão? Pode parecer muito doce, até, mas comporta três consequências fundamentais. A primeira é que, se alguém é uma "cara-metade", isso quer dizer que é também apenas meia-cara; o mesmo é dizer, cada pessoa é apenas meia pessoa, incompleta, em falta, que se esfrega no limite do surreal. Segue-se, em segundo lugar, a ideia da ilusão da completude - que a outra metade vem "encaixar", qual puzzle, e criar uma unidade (uma perfeição, portanto) que não deixa espaços em branco, que é tudo. A isto também se segue, em terceiro lugar, que o importante deixa de ser a outra pessoa, para passar a ser a relação - relação essa que é fusional, que pretende apagar as fronteiras entre sujeitos (quiçá destruir ambos!) para transformar dois meio sujeitos numa relação. Magia das magias, 1+1=1. Claro que, se usei aqui a relação a dois, foi apenas como exemplo mais simples - poderíamos ao invés disso usar 1+1+1+2+1=1, e a história não seria diferente, a base de raciocínio seria exactamente igual. Porém, convém não esquecer que a "cara-metade" é, acima de tudo, o ex libris do ideal romântico (no sentido oitocentista do termo).
Como forma de demonstrar o ponto acima, chamo a atenção para os contos de fadas. "E viveram felizes para sempre. O fim."
Esta felicidade toda parece ser inquestionável - mas atentemos mais de perto. O jogo que se desenrola nos contos de fadas é, novamente, o jogo da dependência. A princesa (encantada) depende da salvação do príncipe, e o príncipe só tem como objectivo principal conquistá-la. Toda a trama se processa em torno da conquista. E depois, perguntarão? Bem, depois, para todos os efeitos práticos, toda a gente morre. Porque a história termina com a união do casal, todo o resto do mundo se revela como apenas a base de suporte para uma relação que engole tudo à sua volta, auto-fágica mesmo, e cujo começo marca também o seu fim (ou a sua crio-preservação) e, consequentemente, o fim dos seus actores.
E voltamos então à pergunta: o que representa para o sujeito a pura relação? Como pode o sujeito fugir da sua fusão e dissolução na relação (codependente)?
Continua...
Índice
A pura relação e o poliamor - I
A pura relação e o poliamor - II
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