quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Espaços públicos e normatividade afectiva

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Ainda no rescaldo (lento) da reportagem que saiu na SIC Notícias sobre poliamor, e no rescaldo das reacções tidas a essa mesma reportagem, sinto que devo assinalar uma crítica feita repetidamente - tanto por pessoas bem-intencionadas como por mal-intencionadas - à reportagem ou, mais precisamente, ao que foi feito na reportagem.

Ao que parece, uma das cenas mais absolutamente horríveis a passar na reportagem foi o facto de eu ter dado um beijo na boca (à "passarinho", como se costuma dizer, lábios nos lábios, curto e rápido) a uma das minhas companheiras e, no momento seguinte, ter feito o mesmo a outra das minhas companheiras.

Deixem isto assentar: numa reportagem sobre poliamor, foi perturbante para muita gente ver um gesto discreto e pacífico de amor.

Isto na mesma sociedade onde ver televisão - seja a que hora for - é quase certamente ver beijos de casais hetero-mono. Isto na mesma sociedade onde sair à rua é ver, quase certamente, expressões de afecto de casais hetero-mono. Isto na mesma sociedade que tem como líderes de audiência reality shows.

Mais, esta crítica vem não apenas da já gasta ala conservadora direitista, mas também (e mais preocupantemente) da ala progressista, de luta dos direitos humanos, de luta por igualdade.

Que igualdade é esta? Que igualdade é esta em que a ocupação do espaço público é particionada de acordo com a orientação sexual e com a orientação relacional? Que igualdade é esta em que um gesto considerado perfeitamente natural numa família monogâmica leva como epítetos "exibicionismo" e "taradice", numa família poliamorosa?

Exibicionismo - exibição - armário. A legitimidade das práticas existe, na cabeça de muita gente, desde que seja dentro do armário. Desde que não se façam cócegas à sensibilidade hetero-mono-normativa vigente. Quando isso sucede, torna-se então válido atacar as pessoas que pretendem mostrar práticas interpessoais diferentes. A moral vigente retorna, mais alargada (vai na volta até se tolera isto nas pessoas não-hetero, desde que com cuidado) mas não menos moralista, não menos policiadora.

Achar que uma demonstração de afecto tão simples quanto um beijo nos lábios entre três pessoas é ofensivo ou desrespeitador para quem está a ver é contribuir activamente para a discriminação contra sexualidades e afectos alternativos, dos vários tipos.

Não, não são as pessoas poliamorosas que são exibicionistas ou taradas. Não existe sexualidade mais exibicionista, sexualidade mais 'perversa', do que a sexualidade hetero-mono-normativa, que se infunde - ou procura infundir-se - em tudo.

[Um agradecimento ao Paulo Jorge Vieira por, há uns tempos, me ter ajudado a pensar estas questões.]

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