Esta madrugada pus-me a ler coisas um pouco ao calhas para
ver se o sono vinha quando me deparei com um daqueles textos/conceitos que
fazem instantaneamente click na cabeça: “relacionamentos queerplatónicos”.
O interessante desta ideia, e a razão pela qual tanto me
cativou, é por finalmente conseguir ter um termo que aproxime ou resuma, de
certa forma, algumas das ideias que já expus em posts anteriores, sobre o papel
cruzado da sexualidade e da amizade.
Para mim, bem como para muitas outras pessoas, o poliamor
não trata apenas de redefinir o número de pessoas com quem podemos ter relações
românticas e/ou sexuais, mas também redefinir o que se entende por “amor”,
abrindo as portas a vários tipos de amor, e à validação de relações de
intimidade que possam contemplar variantes diferentes de amor – bem como à
validação de intimidades que não passem necessariamente pelo amor (romântico ou
de outros tipos) e se possam fundamentar em relações centralmente físicas e/ou
centralmente emocionais mas com modulações que dão um passo ao lado do que
geralmente entendemos por amor.
Por alguma razão, o pessoal em inglês chama a quem está neste tipo de relações, courgettes. |
Como é costume em mim, acabo a ser atirado para algumas das
coisas que Michel Foucault disse para melhor compreender os elementos
envolvidos. Neste caso, fui repegar na entrevista “Amizade como Forma de Vida”,
onde o autor comenta especificamente as relações entre homens em vários
contextos institucionais e sociais e o quanto isso pode servir para um
constante trabalho de reinvenção de uma ‘cultura gay’. Entrementes, ele oferece uma lindíssima definição de amizade
nesse contexto: “A soma de todas as coisas através das quais podem dar prazer
um ao outro”. Tal como é o caso das relações de camaradagem no exército, entre
homens – tão espartilhadas, mas onde o amor também surge e sustenta os vínculos
pessoais – também as construções contemporâneas de amizade parecem
estranhamente espartilhadas, e os sentimentos amorosos (em sentido lato)
tornados neutros, formulaicos, e fortemente a-corporais (não era também disso
que a Adrienne Rich falava?). A resposta, para Foucault, seria então a
existência de uma “inventividade especial para uma situação como a nossa e para
esses sentimentos […]. Temos que escavar profundamente para mostrar como as
coisas são historicamente contingentes, por razões tais e tais, inteligíveis
mas não necessárias”.
As descrições de Foucault na entrevista são-me
particularmente apelativas porque não precludem nem forçam a existência de
práticas sexuais como parte dessa amizade, deixando antes um campo aberto onde,
ainda assim, a criação de vínculos potencialmente disruptivos para o sistema
afectivo vigente passa necessariamente por uma ligação psico-emocional entre
pessoas dispostas a realizar trabalho relacional.
É por causa da centralidade do papel da disrupção que não me
surpreende onde acabei a encontrar este termo, a relação queerplatónica – em recursos dedicados à assexualidade e ao
arromantismo; grupos de pessoas praticamente invisíveis pelo simples facto de
não se reverem na ideia de que toda a gente deve
amar romanticamente e/ou sentir-se sexualmente atraída, e que a ausência destes
elementos é, de alguma forma, patológica.
A Aromantics Wiki
define esta relação como sendo “não-romântica mas ao mesmo tempo envolvendo uma
ligação emocional intensa para além do que a maior parte das pessoas consideram
actualmente como sendo normal numa amizade”, fazendo o cruzamento possível com
todas as formas de orientação de género, sexual, de identidade sexual,
relacional, etc.
No tumblr Aromantic Aardvark há uma explicação mais aprofundada que, para quem escreveu o post,
implica “a quebra das narrativas. Implica não haver regras. Implica fazer, no
fundo, o que quer que seja que a pessoa se sinta confortável a fazer. […] Queerplatónico quer dizer criar a
própria definição, dizer ‘nem platónico nem romântico encaixam’ […] e fazer uma
salada russa daquilo com que as pessoas envolvidas se sentem confortáveis”. Isto
pode incluir ou não elementos mais sexuais, pode incluir ou não esta ou aquela
forma de carinho e intimidade, consoante as pessoas em questão, consoante o momento
em questão – mas tendo sempre como substrato uma noção de compromisso, de laço
estreitamente firmado, intenso, que frequentemente corre o risco de ser
confundido (especialmente por terceiras pessoas) com algo romântico ou
criticável.
A mera existência deste tipo de relações perturba
fundamentalmente o sistema relacional mononormativo (dados os ‘erros’ de
leitura do que estas relações são, e a centralidade da ideia de compromisso,
normalmente associada apenas às relações românticas sexuais), e encontra no
poliamor e outras não-monogamias consensuais aliados naturais – mesmo nos casos em que o
sexo esteja totalmente excluído da relação. Ao mesmo tempo, ao permitir o
estabelecimento de formas relacionais a
la carte, serve para quebrar os ditames normativos de disciplina corporal
sobre quem podemos beijar ou não, tocar ou não, amar ou não, comprometermo-nos ou não (não sei se já notaram que
basta alguém não estar num namoro para se dizer que a pessoa não está “comprometida”;
como se os outros compromissos fossem secundários).
Reconheço que o termo talvez não seja o melhor: afinal, a
ideia de uma relação platónica não é a ideia de uma relação não-romântica, mas
a ideia de uma relação casta e não-sexual, e tenho dúvidas sobre se simplesmente adicionar a possibilidade de
uma componente sexual ao mesmo tempo é suficiente para se considerar que se
está a queerizar o termo “amor
platónico”. (Vai daí que convido quem me lê a sugerir mais e melhores termos!!).
Para já, fico contente por ter uma expressão e uma série de links que posso
mostrar, e que facilitarão a comunicação futura para explicar a outras pessoas
o que sinto/quero/gosto. Algo que, nos últimos 9 anos de poly, não tem sido
nada, nada fácil.
3 comentários:
Good reads
Mesmo nos casais monogâmicos, passada a paixão decorrente da concretização de um desejo -- já que para Platão, o amor (eros) decorre do desejo -- , o casal pode ser feliz durante muitos anos, até ao final do seus dias, reconhecendo que quando o amor se apagou, este foi agora substituído pela amizade.
No fundo, basta que se deixe a mentira do "querido/a, amo-te como no primeiro dia", para "tenho uma sorte imensa de te ter ao meu lado".
Na verdade, quem nos conhece melhor que o outro/a? E quem nos deseja o melhor senão o outro/a? Dois amigos que se fazem felizes, ou seja, cada um deles tem a grande felicidade de poder dormir com o melhor amigo....
abraço
@heartixt
Mais ainda: para os Gregos, o amor entre pessoas casadas não era sequer o amor 'eros', mas o 'agape'; eles tinham toda essa questão devidamente separada e sistematizada.
Porém, será que seria mais correcto dizer que o amor se apagou, ou se transformou? Pessoalmente, prefiro a segunda formulação, porque creio que a primeira volta a instaurar a ideia de que existe uma forma máxima ou paradigmática de amor e que tudo o resto são sucedâneos (onde entraria a amizade, por exemplo).
Daniel
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