sexta-feira, 2 de março de 2012

Stand by

Publicado por Daniel Cardoso

Há uma sensação de estranheza quando uma relação acaba, muitas das vezes. Mas não há uma sensação menor de estranheza quando uma relação é posta no frigorífico ou, melhor dizendo, na prateleira.
Eu já aqui falei de poliamor e seus amor(es), diferentes visões da palavra e de como as amizades, ao implicarem intimidade, podem também circular à volta de práticas sexuais que alimentem essa mesma dinâmica de intimidade.

As minhas relações (poli-)amorosas não são todas românticas. Também não são relações de primeira e segunda categoria, são relações que passam por uma panóplia de experiências e tonalidades diferentes que podem misturar várias emoções, práticas eróticas, etc. Isto funciona precisamente porque, tendo cada uma das relações a sua especificidade, nenhuma está intrinsecamente valorizada face a outra (já cheguei, há anos atrás, quando estava ainda a descobrir esta coisa de como ser poliamoroso, a perigar uma relação de “namoro” por uma relação de amizade em que também existia sexo).

Só que, obviamente, nem toda a gente opera segundo os mesmos princípios, e o que acontece é uma descoincidência entre aquilo que se diz fazer, e aquilo que se faz na mesma. Porque, pela minha experiência, o que acaba a acontecer é que as relações de amizade (com sexo também) são vistas como não sendo “a sério”. Porque “a sério” é um namoro. A sério é alguém que se pode levar aos pais, apresentar e falar explicitamente sobre a existência de uma relação. E aí, a componente íntima sexual, ao invés de passar a ser uma parte integrante da relação de amizade, é um módulo externo a ela, sem a qual ela deverá passar tão bem como quando existe (dando provas da sua irrelevância, então?).

O resultado de uma visão hierarquizada das relações (ou do tipo de relações que se deve ter) é precisamente este: quando uma relação socialmente valorada como superior aparece no horizonte de possibilidades, então aquilo que existe perde importância relativa e torna-se passível de ser descartado.

Conheço várias pessoas que me dizem que isto tem que ver com “respeitar” a pessoa com quem iniciam essa nova relação. Tem que se respeitar os desejos monogâmicos dessa pessoa mesmo quando esses desejos são antitéticos aos de quem toma a decisão de secundarizar outras relações, já íntimas (supostamente) e duradouras (factualmente). Estranha coisa esta, que alguém entre num modelo de relação que não é aquele que mais deseja, por “respeito” a esse desejo de monogamia – porque é que tem que ser o desejo de monogamia a ser superiormente respeitado, face ao desejo de não-monogamia? Se fosse ao contrário, não se falaria de respeito: falar-se-ia de uma cedência ou sacrifício que a pessoa monogâmica faria em aceitar os comportamentos não-monogâmicos da pessoa por quem se apaixonou. E como este acto de respeito (acho que conseguem ouvir o sarcasmo através do computador!) é, apesar de tudo, muitas vezes feito um pouco a contra-gosto, então põe-se essa componente sexual / íntima na prateleira… até haver disponibilidade de lá ir buscar novamente (até já não ser preciso respeitar mais ninguém, parece). Porque a posição normativa é de respeito… as outras são uma violência, uma agressão a que algumas pessoas se sujeitam, então não se vê logo?!...

No meio disto tudo, onde fica o respeito pela relação pré-existente e pela sua especificidade? Onde fica o respeito que a pessoa tem por si mesma, pelas suas escolhas, e pelas suas preferências não-monogâmicas? E onde está o respeito vindo da tal nova pessoa, que vai ocupar o lugar “cimeiro”, e que se apaixona por alguém que é não-monogâmico, sem atenção ao ecossistema de relações que essa pessoa já tem, e apenas sob a condição de essa pessoa deixar de ser, em parte, quem era/é?

13 comentários:

carpe vitam! disse...

Nunca vivi esse dilema, por isso só posso dar uma perspectiva de quem está de fora. Penso que é extremamente importante que a nova pessoa esteja a par das relações existentes, sejam elas de que natureza forem. Para a relação ser possível, tem de haver uma cedência de uma das partes, mas não é obrigatório que seja a pessoa poliamorosa a ceder ou "respeitar" a monogamia.
Fundamental é que ambos se respeitem e sejam sinceros quanto às suas escolhas.

Daniel Cardoso disse...

@ carpe vitem!,

Pior mesmo é quando as pessoas novas estão a par das relações existentes, mas fazem de conta que não estão...

carpe vitam! disse...

acredito. a mim só me aconteceu pessoas com relações supostamente monogâmicas procurarem-me para outro tipo de relações sem o conhecimento do(s) seu(s) par(es). nada tenho a ver com as relações dos outros, mas no que me diz respeito, evito pessoas com compromissos (supostamente) exclusivos. é muito mais simples e honesto.

Anónimo disse...

Tal e qual.. can you read my mind?
E qual a solução que a pessoa não-monogâmica pode encontrar, logo eu?
Das duas uma: ou se sujeita ao dito respeito pela pessoa por quem se apaixonou (esta monogâmica e que ridiculariza sequer a palavra poliamor), desrespeitando-se a si própria, ou então, afasta-se dessa pessoa porque não se sente aceite na sua identidade não-monogamica? Se falarmos de respeito e direito ao mesmo e não havendo um ponto de aceitação mútua e convergência, então significa que essa relação (entre a pessoa não-monogâmica e a pessoa monogâmica que não se revê numa identidade poliamorosa) será improvável, ou quanto muito, menos fácil de gerir para a pessoa não-monogâmica?
Não sei se me fiz entender, mas Daniel, quanto mais penso, mais perguntas e também menos respostas encontro. No fim, acabo por deixá-las de lado e pensar que o caminho mais fácil é negar-me perante mim mesma e focar-me noutros aspectos da relação e que me fazem sentir bem, mas no fundo, não realmente feliz, sentindo-me aceite e, consequentemente, respeitada...

Daniel Cardoso disse...

A minha solução, e vale pelo que vale, é mudar a relação... manter o que se pode manter, e deixar morrer aquilo que realmente não coube dentro de uma visão demasiado estreita de "respeito"...

Carla disse...

Respeito?
Um amor?
Monogãmico e para sempre ?

Mas ja sabemos que isso é uma ilusao.

Se as pessoas fossem quem realmente sao, comiam se umas as outras,mas como me disse um sexólogo- isso nao pode ser , a sociedade tem regras .Que puta de hipocrisia.
Carla

Diana *ou* O Pequeno Tornado disse...

Da minha experiência, curta, as coisas falam-se. Tranquilamente.
Com carinho e amor.
Eu tento mesmo compreender o outro e colocar-me no seu lugar.
Para muitas pessoas o poliamor é um conceito realmente novo, muitas pessoas nem sequer alguma vez pensaram ser possível esta vivência das relações...
Tudo se fala e depois não se trata de mais nada que não decisões pessoais, e/ou comuns.

Numa coisa concordo com a Carla: Monogamico e para sempre?

Como é que eu posso prometer isso a alguém?

Mas Daniel, tocas numa questão na qual tenho pensado imenso, a questão das hierarquias... Que para mim são na verdade matéria para infinitas conversações :) quanta complexidade não me trazem. Será que realmente faz sentido catalogar relações, sentimentos, vivências e afectos? colocá-los numa pirâmide?...
Primeiro estas tu, depois vens tu?
...

Obrigada pela partilha :)
Estou feliz por saber-me acompanhada neste caminho.

Daniel Cardoso disse...

Diana:

Estou a descobrir que hierarquias cada vez funcionam pior comigo. Há momentos e há pessoas que me fazem sentir coisas mais intensas... mas isso é decorrente das vivências, não de uma categorização onde se enfia as pessoas em escadinhas de amor e respeito...

:-)

Diana *ou* O Pequeno Tornado disse...

:) Gosto disso, e estava a ver que nunca mais encontrava ninguém que sentisse assim.
Que bom.
Só hoje descobri o blog. Estou a devorar.
Obrigada!

Daniel Cardoso disse...

Encontras por aqui muita gente que pensa assim: e vi que já deste com o meu outro texto, sobre Contar Cabeças... :)

Fica por cá e sente-te em casa!

Márcia Sales disse...

Me descobri poliamorosa há pouco tempo e estou aprendendo aos poucos este novo estilo de vida. Me sinto mais verdadeira comigo mesma, mas não é fácil gerir as relações, equacionar tudo o que vem com elas...estou me identificando com todas as histórias compartilhadas aqui e isso está me dando ânimo a seguir em frente. Foi muito bom encontrar vcs ;-)

Daniel Cardoso disse...

Márcia,

Fico feliz por ter podido ajudar.

Estamos também no fórum
www.polyportugal.org/forum/

E no Facebook, onde também existem vários grupos brasileiros!

Márcia Sales disse...

Obrigada Daniel. A palestra da Univ. Évora foi fundamental para minha compreensão sobre o poliamor e me enxergar poliamorosa. Vou dar uma olhada no Fórum. :-)