Quero repegar no assunto da semana passada, como disse que ia fazer, avançando para o segundo ponto. Relembro:
2 – os ataques imparáveis, prévios e posteriores, nacionais e internacionais, ao conceito da marcha, ao que ela defende, à sua forma de execução; que vêm não apenas da ala tipicamente patriarcal, mas também, e especialmente, de várias alas de alguns feminismos
Existem vários exemplos de blogs onde se podem ler críticas feministas à SlutWalk (ou a SlutWalks específicas) – um famoso exemplo é este. Um exemplo ao nível de Portugal (ou seja, sem sofisticação, base conceptual ou desenvolvimento de ideias para além do insulto barato) seria este. [Tomem um momento para ler estes ou outros textos, a bem da contextualização.]
Estas críticas tendem a concentrar-se em dois aspectos fundamentais:
a) A palavra “slut” é irrecuperável, irreclamável, inapropriável – enfim, intocável.
b) A apresentação de mulheres vestidas de forma provocadora, sexy, erótica, etc., vem apenas servir para alimentar a visão objectificante das mulheres, e apresenta-las de acordo com um padrão heterossexista e patriarcal de desejabilidade.
Cito do primeiro exemplo:
Quanto a isto, em nada posso ou quero discordar. Mas o mesmo pode ou não aplicar-se à palavra “gay”, “fufa”, “queer”? E, no entanto, estas palavras foram repescadas por vários movimentos, em vários países, e são agora consideradas como fonte de empowerment para milhões de pessoas quando, anos antes, ninguém (dentro dos mesmos movimentos) as usava sequer. Ora, se a palavra “slut” não pode seguir o mesmo caminho, então terá que existir alguma característica da palavra que sirva para a distinguir das outras. Vejamos: “gay” é uma palavra violenta, usada para causar dano e excluir grupos de pessoas, com uma longa tradição de uso para fins discriminatórios, e tem como base um padrão normativo de género e sexualidade. A mesma descrição se pode aplicar à palavra “slut”. Também pertencem à mesma categoria gramatical… Ou seja, a diferença, para todos os efeitos, não existe.
Outra citação:
Cito do primeiro exemplo:
“This is a word that has been used to hurt, shame, and abuse me. It is a word that has been used to hurt, shame, and abuse women everywhere. In order to silence them, control them, punish them and, of course, blame them. […]This word, as I have mentioned, has been used in a myriad of ways to hurt me. I have been called a slut for having sex, for not having sex, and for being coerced into sex. I have been called a slut by partners, by friends, and by acquaintances. I wish that this word did not hold the power it does. I wish that it had not been used to hurt and abuse me. But it has. There is no erasing that.”
Quanto a isto, em nada posso ou quero discordar. Mas o mesmo pode ou não aplicar-se à palavra “gay”, “fufa”, “queer”? E, no entanto, estas palavras foram repescadas por vários movimentos, em vários países, e são agora consideradas como fonte de empowerment para milhões de pessoas quando, anos antes, ninguém (dentro dos mesmos movimentos) as usava sequer. Ora, se a palavra “slut” não pode seguir o mesmo caminho, então terá que existir alguma característica da palavra que sirva para a distinguir das outras. Vejamos: “gay” é uma palavra violenta, usada para causar dano e excluir grupos de pessoas, com uma longa tradição de uso para fins discriminatórios, e tem como base um padrão normativo de género e sexualidade. A mesma descrição se pode aplicar à palavra “slut”. Também pertencem à mesma categoria gramatical… Ou seja, a diferença, para todos os efeitos, não existe.
Outra citação:
“I may well be, in theory and in life, the ‘ally’ of a self-described ‘slut’. But I am not about to call her one.”
Aqui, eu confesso-me perdido. A autora do texto recusa-se, portanto, a utilizar uma auto-identificação quando se dirige a outra pessoa? Qual é a retórica aqui? Negar-lhe o direito de ser reconhecida pela palavra que a própria pessoa terá escolhido para si? Isso é respeito pela identidade de alguém?... Não me parece, francamente. Mas parece-me haver aqui um silêncio forçado sobre a palavra, em que se recusa a sua utilização mesmo quando essa é a vontade da pessoa assim determinada, mesmo quando isso é feito com um propósito político. Há ainda um outro ponto a fazer sobre esta primeira parte da questão – quais são as consequências de afirmar uma palavra como sendo irrecuperável, inapropriável?
Bem, se a palavra-ferramenta de agressão que está ao serviço da cultura machista e patriarcal não pode ser de forma nenhuma re-significada (e não existe reapropriação sem re-significação), então isso quer dizer que, no caso da palavra “slut”, essa mesma cultura patriarcal tem um poder absoluto e inalienável sobre uma determinada ferramenta de agressão, e nada podemos fazer sobre isso. Podemos tentar silenciar ou banir o uso da palavra, claro, mas isso não iria contra a regra de que só a estrutura social patriarcal teria então o poder de dominar esta palavra.
Dizer que a palavra “slut” (ou outra palavra qualquer, já agora) é inapropriável, é reforçar e essencializar o domínio de uma cultura sobre essa mesma palavra – constitui em si um acto de submissão, ainda que limitado.
Por fim, acho que me cabe dizer que existe mais um motivo pelo qual a palavra “slut” é, de facto, apropriável: porque é uma palavra! As palavras não existem e não operam fora da sua apropriação por alguém – nem têm um ‘escudo Actimel’ que as proteja de outras interpretações, leituras, subversões, ironias, etc.
Passo agora ao ponto b), que trata da objectificação das mulheres quando elas afirmam a sua autonomia sexual, quando saem para a rua vestidas de forma sexy.
Outra citação, daqui:
Bem, se a palavra-ferramenta de agressão que está ao serviço da cultura machista e patriarcal não pode ser de forma nenhuma re-significada (e não existe reapropriação sem re-significação), então isso quer dizer que, no caso da palavra “slut”, essa mesma cultura patriarcal tem um poder absoluto e inalienável sobre uma determinada ferramenta de agressão, e nada podemos fazer sobre isso. Podemos tentar silenciar ou banir o uso da palavra, claro, mas isso não iria contra a regra de que só a estrutura social patriarcal teria então o poder de dominar esta palavra.
Dizer que a palavra “slut” (ou outra palavra qualquer, já agora) é inapropriável, é reforçar e essencializar o domínio de uma cultura sobre essa mesma palavra – constitui em si um acto de submissão, ainda que limitado.
Por fim, acho que me cabe dizer que existe mais um motivo pelo qual a palavra “slut” é, de facto, apropriável: porque é uma palavra! As palavras não existem e não operam fora da sua apropriação por alguém – nem têm um ‘escudo Actimel’ que as proteja de outras interpretações, leituras, subversões, ironias, etc.
Passo agora ao ponto b), que trata da objectificação das mulheres quando elas afirmam a sua autonomia sexual, quando saem para a rua vestidas de forma sexy.
Outra citação, daqui:
“In the post 9/11 climate, the focus on a particular version of sex(y)-positive feminism runs the risk of further marginalizing Muslim women’s movements who are hugely impacted by the racist ‘reasonable accommodation’ debate and state policies against the niqab. […]I find that the term disproportionately impacts women of colour and poor women in order to reinforce their status as inherently dirty and second-class, and hence more rape-able.”
E daqui:
“Sluwalk does, in many ways, resemble the same kind of privileged, individualist, ‘anything goes so long as it’s my choice‘ feminism which argues that prostitution is simply a choice like any other (or ‘work’ like any other kind of work), that objectification can be empowering as long as we are choosing to objectify ourselves […]”
Sinto aqui um receio incrível de abordar questões que tenham que ver com sexualidades explícitas. E embora pessoas de etnias não-caucasianas e de religiões não-ocidentais sejam, de facto, especialmente vitimizadas por uma série de questões em torno da “sluttiness”, não deixa de ser verdade que elas parecem ser aqui convocadas para justificar um discurso que, depois, acaba por não as pensar directamente, acaba por não sugerir possibilidades de entrosamento e acção. Note-se que, por exemplo, um qualquer feminismo que afirme que a prostituição possa ser uma questão de escolha (e há que reparar que, nestes textos, tudo é tratado de forma absoluta, em função de um tudo/nada) será, automaticamente, conotado com pós-feminismo. Isto, quando a autora passa o texto todo a falar mal de quem fala mal do feminismo radical.
Mais: a possibilidade de as mulheres escolherem torna-se, aqui, um possível problema que tem que ser resolvido – ao que parece, é o corpo teórico do feminismo que tem que ditar às mulheres o que elas podem ou não podem fazer com os seus corpos.
Isto é também visível no exemplo português que dei acima. A figura da miúda transmontana é tratada como se o sistema que a oprime especificamente fosse, de alguma forma, separado ou alheio às questões debatidas e feitas relevar na SlutWalk. É também um texto que, contra si, reinstaura o insulto como insulto (“Galdéria é a tua tia, pá”) e articula-o de forma machista e que, ao dizer que o Manifesto da SlutWalk Lisboa não explicita o “não” da galdéria, falha a realização de que a galdéria é toda aquela pessoa que está em todas aquelas situações descritas no manifesto (e em muitas outras). Porque a galderice, como insulto, não surge das práticas, mas dos investimentos dados, cognitivamente, às práticas!
Outra questão: é aqui usada a palavra “objectificar” várias vezes, e de a SlutWalk representar uma forma de objectificação das mulheres pelas mulheres. No meu entendimento da “objectificação”, o sujeito não se pode objectificar (embora possa dar-se à objectificação, embora possa exteriorizar-se e, a partir desse ponto, objectificar-se) e, ao mesmo tempo, manter a sua vontade. Objectificação tem que ver com perda de vontade. Porém, a SlutWalk é a afirmação inequívoca da vontade, a afirmação inequívoca de que, independentemente dos comportamentos (que, percepcionados patriarcalmente, transformam qualquer mulher em “slut”, ou ameaçam fazê-lo), “NÃO É NÃO”.
Os corpos das pessoas que foram desfilar para a SlutWalk serviram para demonstrar aquilo a que o agressor NÃO tem direito. Aquilo que, ainda que veja (e vê apenas porque o deixaram ver) não está legitimado em fazer o que quer que seja. A objectificação é o oposto deste processo. As “sluts” desfilaram em vários estados de nudez (desde o estado quase-nu até ao estado está-calor-com-tanta-roupa) e com indumentárias também não-ocidentais. Porque todas estão em risco de ser consideradas “sluts”.
Mais: a possibilidade de as mulheres escolherem torna-se, aqui, um possível problema que tem que ser resolvido – ao que parece, é o corpo teórico do feminismo que tem que ditar às mulheres o que elas podem ou não podem fazer com os seus corpos.
Isto é também visível no exemplo português que dei acima. A figura da miúda transmontana é tratada como se o sistema que a oprime especificamente fosse, de alguma forma, separado ou alheio às questões debatidas e feitas relevar na SlutWalk. É também um texto que, contra si, reinstaura o insulto como insulto (“Galdéria é a tua tia, pá”) e articula-o de forma machista e que, ao dizer que o Manifesto da SlutWalk Lisboa não explicita o “não” da galdéria, falha a realização de que a galdéria é toda aquela pessoa que está em todas aquelas situações descritas no manifesto (e em muitas outras). Porque a galderice, como insulto, não surge das práticas, mas dos investimentos dados, cognitivamente, às práticas!
Outra questão: é aqui usada a palavra “objectificar” várias vezes, e de a SlutWalk representar uma forma de objectificação das mulheres pelas mulheres. No meu entendimento da “objectificação”, o sujeito não se pode objectificar (embora possa dar-se à objectificação, embora possa exteriorizar-se e, a partir desse ponto, objectificar-se) e, ao mesmo tempo, manter a sua vontade. Objectificação tem que ver com perda de vontade. Porém, a SlutWalk é a afirmação inequívoca da vontade, a afirmação inequívoca de que, independentemente dos comportamentos (que, percepcionados patriarcalmente, transformam qualquer mulher em “slut”, ou ameaçam fazê-lo), “NÃO É NÃO”.
Os corpos das pessoas que foram desfilar para a SlutWalk serviram para demonstrar aquilo a que o agressor NÃO tem direito. Aquilo que, ainda que veja (e vê apenas porque o deixaram ver) não está legitimado em fazer o que quer que seja. A objectificação é o oposto deste processo. As “sluts” desfilaram em vários estados de nudez (desde o estado quase-nu até ao estado está-calor-com-tanta-roupa) e com indumentárias também não-ocidentais. Porque todas estão em risco de ser consideradas “sluts”.
Ora, se todas elas estão em risco de ser consideradas “sluts”, isso quer dizer que existe uma dicotomia entre ser-se “slut” e “não-slut”. Essa dicotomia é, obviamente, mantida pelo status quo machista predominante. O que acontece se descolarmos obviamente a ideia de “slut” de qualquer padrão de comportamento? O que acontece se, ironicamente, procedermos à auto-atribuição do conceito de “slut” a qualquer mulher, a qualquer pessoa? A dicotomia é, por um lado, revelada na sua artificialidade e arbitrariedade e, por outro, fundamentalmente anulada. Querer fugir da palavra “slut” (independentemente da origem social, do comportamento sexual, da indumentária!) é arriscar a manutenção da dicotomia “slut” / “não-slut” – dicotomia essa que serviu para policiar e regulamentar os comportamentos sexuais, os comportamentos de vestuário e que, regressando ao fundamento da SlutWalk, que serviu tantas vezes para legitimar actos incomportáveis de violência, como a violação.
“Entonces me di cuenta que no hay nada que moleste más a hombres y mujeres machistas que una mujer presumiendo, y enorgulleciéndose, de lo puta que es. Sencillamente les jode. Y POR ALGO SERÁ.”
- Manifiesto Puta, Beatriz Espejo
2 comentários:
É interessante a análise que fizeste ao nível não só da desconstrução da palavra Slut - que, como queer, é, na sua origem, insulto - e que curiosamente não é ela mesma alvo dessa desconstrução por parte de muitos feminismos e muitas mulheres; mas também a análise à questão da objectificação, eterna questão feminista, e que foi por algumas autoras e comentadoras vista de forma simplista. Eu gostava de pelo menos começar a entender porque é que a Slutwalk Lisboa foi tão diferente das outras - mas talvez a simples palavra 'feminismo' associada à manifestação tenha sido o suficiente para mais uma vez afastar toda a gente do termo papão e assustador.
Sim, é possível - e isso vai de encontro ao post anterior - que a presença tão forte do feminismo tenha afastado muita gente. Se isso é positivo ou negativo, é ainda uma questão que precisa de mais reflexão - certamente não será da minha parte que se ouve apoio pelo apagamento de posições importantes, explicitadas.
Mas a questão da objectificação pende ainda um bocado como fantasma - e praticamente tudo pode ser reinterpretado como objectificação. O problema é quando a ideia da objectificação é tão forte que a internalizamos e passamos a ver objectificação em tudo quanto sejam opiniões diferentes da nossa. É a ideia do "eu é que sei o que é O Verdadeiro Feminismo"...
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