sexta-feira, 8 de julho de 2011

Manifesto das duas gajas com um gajo - Parte 1

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É certo e sabido que quando estamos ocupados a fazer o contrário do que a maioria faz, a remar contra a maré, a recusar fazer o que toda a gente faz só porque toda a gente o faz, quando estamos, precisamente, ocupados a viver vidas sem guião preparado, a fazer coisas que não sabemos se mais alguém fez, a sermos visíveis nas nossas identidades e opções in your face e, activamente, a não nos preocuparmos sequer com isso, é certo e sabido, dizia eu, que nos vai cair o carmo e a trindade em cima (perdoem-me a expressão característica) na forma de críticas infundadas, estereótipos formatados, bocas foleiras, comentários paternalistas e tons condescendentes. Quando para além disto tudo ainda somos mulheres, lésbicas, feministas, queer, kinky, poliamorosas e jovens, a coisa tende a complicar-se gravemente.

Ora eu sou tudo isto, e tenho pouca paciência para silêncios, ou o chamado "comer e calar", aquela virtude para a qual as mulheres foram sempre treinadas e na obtenção da qual eu falhei grande e desastrosamente. Com esta minha incapacidade vem uma profunda alergia a que me tentem formatar, encaixar, confinar, limitar, circunscrever, encerrar em bonitas caixinhas que constituem os alicerces fundamentais da sociedade patriarcal, heteromononormativa. Aparentemente a caixinha mulher torna-me um ser humano a ter em menor conta do que aqueles que se encontram na caixinha homem. Como lésbica sou invisível. Como feminista sou ignorada. Como queer sou desconhecida. Como kinky sou excluída. Como jovem sou desconsiderada. E como poli sou estereotipada. E porquê? Porque, por alguma razão obscura, quando ando com o meu companheiro e a companheira do meu companheiro o que as pessoas vêm é - adivinhem só - um gajo com duas gajas. É curioso que nem o número - o facto de sermos duas gajas e portanto maioria, de um certo ponto de vista - nos traz mais visibilidade positiva. Pelo contrário. O gajo é o sujeito, as gajas as coitadas. O gajo é o garanhão que come duas. As gajas deixam-se ir. O gajo é que se diverte, as gajas suportam ou sofrem. O gajo fica a ganhar, as gajas são, no mínimo, desgraçadas. Curiosamente, no meio disto tudo, as gajas desaparecem. E toda a gente se parece esquecer que estão ali, também, duas gajas com um gajo. Mas isto seria totalmente contra-intuitivo - primeiro porque as gajas não são sujeitos, mas objectos decorativos. Depois porque as gajas nunca escolheriam uma coisa destas. E por último, porque provavelmente as gajas não devem ser pessoas com vontade, inteligência, determinação, livre arbítrio e capacidade de decisão. Porque raio quereriam estar elas com o mesmo gajo?

Pois é, sendo eu uma das gajas, devo dizer que me divirto. Estou com quem quero, como quero e bem entendo, disponho da minha vida, das minhas escolhas. Sou livre - a nível relacional, afectivo, sexual, pessoal. Sou livre de me afirmar lésbica e me apaixonar por um homem. Sou livre de me afirmar poli e andar de mão dada a três na rua. Sou livre para ser queer e rebentar com as caixas onde me querem meter.

27 comentários:

Maggie Gonçalves disse...

muito bom! e espero ser o início de muitas caixas a rebentar!!...

bjnhos**
Margarida

Fryne disse...

Obrigada por leres e comentares, Maggie :)

Assim espero, e estou quase certa de que assim será.

beijinhos,

Fryne

homempasmado disse...

Gostei do teu post!

E ainda bem que te divertes, LOL, mas será que achas mesmo obscuro as pessoas verem “um gajo com duas gajas”?

Sendo preconceituosas sobre o vosso relacionamento, as outras pessoas vão buscar as referências que conhecem.

E o que conhecem é justamente as sociedades e as culturas onde as duas (ou mais) mulheres que “andam” com um gajo são (quase sempre?) isso que dizes:
“… coitadas, objectos…”

Vão buscar também outros exemplos na nossa sociedade, onde alguns homens chegavam a assumir publicamente as suas vidas paralelas! Coisa que uma mulher (em princípio) não faria, (e não poderia fazer?)!

E, dentro da caixa que é a monogamia, a partilha e o amor por mais de uma pessoa não tem cabimento!

Sabendo disso, não é de espantar que cheguem a essas conclusões, as quais, embora fazendo sentido e sendo lógicas dentro das suas referências, não o são dentro das nossas!

Quanto às “caixas”, penso que todos nós nos encaixamos dentro de alguma(s). O problema é quando as pessoas fecham as caixas e não se permitem reavaliar as suas opiniões pelo ponto de vista do outro!

Abraço

Sílvia disse...

Não subvertam os termos, se uma lésbica está com um homem é porque não é lésbica, mas bi ou pansexual...

Daniel Cardoso disse...

Queer is all about subversion! :D

Fryne disse...

Obrigada pelo teu comentário homempasmado :) Concordo com o que dizes, mas eu sou uma inconformada e quero forçar a mudança de estereótipos. É por isso que escrevi este texto, é por isso que dou a cara e falo de poly, é por isso que não escondo as minhas relações, porque acho que estou a fazer algo - aquilo que posso - para que não estagnemos no sexismo que já existe. Dizes bem - uma mulher não poderia assumir uma vida paralela - eu quero que as mulheres tenham direito às suas vidas, à sua sexualidade, à sua liberdade pessoal. E quero que as pessoas possam começar a estilhaçar as caixinhas que têm na cabeça - por exemplo a caixinha que diz que eu não devo dizer que sou lésbica se ando com um homem :P

Fryne disse...

TheEmpress, lamento se te incomodo, mas eu gosto de subverter termos e quantos mais, melhor. Não te reconheço qualquer autoridade para me dizeres que não posso ser lésbica se ando com um homem e que me devo definir por qualquer outra coisa que aches melhor - essas são as tuas caixas, não as minhas. A minha identidade é definida por mim. Podia ser lésbica a vida toda sem nunca sequer ter uma única relação com uma mulher. E essa é a beleza de destruir as caixinhas bonitas em que decidiram que eu devo estar.

antidote disse...

@TheEmpress:
Ser lésbica (ou qualquer outra coisa) nao é acerca do que se faz ou com quem se dorme, mas com as escolhas que se fazem. Há lesbicas assexuais. Encontramos a velha disputa se a praxis é que define um sujeito ou nao, ou se a identificacao com um conceito ou uma possibilidade. Ser lésbica é um conjunto de opcoes políticas e sociais, muito para além de com quem se dorme. Convido te a leres este pequeno artigo, que foi publicado na Bichana e provavelmente será publicado na próxima zona livre:

http://laundrylst.blogspot.com/2009/03/de-que-falamos-quando-falamos-sobre-ou.html

Sílvia disse...

Fryne, por causa de lésbicas como tu é que o meio lésbico é aquilo que é...
Pena não se encerrarem nas vossas caixinhas, e deixarem de poluir os poucos lugares onde as verdadeiras lésbicas se sentem em casa...

Daniel Cardoso disse...

TheEmpress,

A única pessoa agressiva aqui estás a ser tu... portanto não sei quem é que prejudica mais o meio lésbico...

Fryne disse...

TheEmpress,
Nem sequer mereces resposta, depois desse ataque queerfóbico pessoal. Eu não sei o que são verdadeiras lésbicas. Dispenso verdades essenciais.

Anónimo disse...

SIM, EU QUERO POLIAMOR NA MINHA VIDA

A sociedade portuguesa está melhor no campo das mentalidades do que há 20 anos. No entanto, há muitíssimo caminho a percorrer. Não somos nada progressistas no campo das definições libidinosas, mas quando Nova Iorque só este ano legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, nem tudo é mau por cá...

Mas, podia ser melhor, não fossemos demasiado católicos e pouco religiosos. Viva a hipocrisia reinante...

O texto de Fryne está excelente e quem dera mais mulheres e, já agora, homens terem coragem em assumir o que realmente desejam no seu mais íntimo pensamento sentimental. Como se sabe, nesta sociedade onde não faltam sinais de machismo e conservadorismo, é normal ver-se o poliamor como "o gajo que anda com duas gajas" e não mais do que isso.

A inveja é reinante e os praticantes da monogamia (casados, juntos ou namorados; hetero ou outras orientações) não conseguem esconder isso. Por outro lado, são cínicos para consigo mesmos. Por isso, não estranha a taxa de divórcios e, em alguns casos, tragédias passionais - vulgo assassinatos derivado ou não de violência doméstica.

Mas, sendo um país submisso (desde a idade média, pelo menos, onde nunca tivemos uma revolução realmente popular) e que vive maioritariamente da aparência ("Já viram a casa onde moro? As roupas que uso? A marca do meu carro?"...Sendo muito oriundo do dinheiro dos papás...), não estranha.

Sim, eu sou adepto do poliamor, mas se calhar tenho que mudar de país. Não estou a ver que haja muitas Fryne com coragem. Podem ser poucas, mas hei-de encontrá-las. Se houver química e elas forem defensoras do poliamor, melhor.

ASS: FÃ DE TRUE BLOOD

Rita disse...

Fryne

Não é por tu chamares mesa a uma cadeira que esta passa a ser mesa. A questão não é as caixinhas mas a nomenclatura necessária para nos entendermos. O código de linguagem se assim o quiseres chamar. Se eu digo colher, tu pensas no objecto colher, não no garfo por ex. Uma lésbica não é o mesmo que uma bissexual, alguém que se apaixona por homens ou mulheres. E não importa quantas vezes o digas, isso não passa a ser assim só porque tu o queres, lamento.

homempasmado disse...

Fryne:
É importante mesmo dar a cara e fazer barulho. O low profile apenas ajuda a perpetuar a sociedade demasiado preconceituosa em que vivemos, mas rebentar caixas só porque elas estão lá, não me parece de grande interesse.

Afinal, todos nós, incluindo tu, nos enquadramos em muitas caixas.

E, quando se tenta rebentar com uma, convém saber porque se o faz.

Pelo menos é assim que a coisa funciona comigo!
:-D

Se tu gostas de rebentar pelo prazer de rebentar, força!
Se isso obriga ao diálogo e ao questionar dos preconceitos vigentes, sem dúvida que será útil!

Mas eu não te invejo a tarefa ;-)

**** & { } { }

naturaldisaster disse...

TheEmpress, Rita,

se, no meio de uma rua movimentada, gritasse "SUA PUTA!", ninguém esperaria que uma prostituta se virasse para trás. na nossa sociedade, puta (s. f. 1. [Calão] Mulher que se prostitui. = MERETRIZ, PROSTITUTA, RAMEIRA 2. [Calão, Depreciativo] Mulher que tem relações sexuais com muitos homens), tal como montes de outras palavras, não vive um "código de linguagem" contínuo imutável. muito pelo contrário. e esse significado é construído por nós. o significado que darão a muitas palavras não será certamente o mesmo que eu darei. e com isto, ninguém pode contestar o facto de que quando grito "SUA PUTA!" na rua, a maioria das pessoas não espera ver uma trabalhadora do sexo e sim alguém que me tenha chateado e que eu queira ofender (e.g.).

Fryne disse...

Rita,

Há bem pouco tempo homossexualidade equivalia a doença, e mulher a ser inferior e menos dotado de inteligência. Eu pessoalmente gosto bastante que isso tenha mudado - e que os significados e linguagem, hoje, sejam outros. A linguagem não é imutável e nós não existimos para as palavras - as palavras é que existem para nós, especialmente quando se trata de definir identidades. E eu não deixo que ninguém defina a minha identidade por mim. A orientação sexual não é feita pelo sexo das pessoas com quem nos envolvemos sexualmente - em que caixa enfiaremos as lésbicas assexuais? Ou porque não queremos conceitos complicados, fingimos que as pessoas não existem? Lésbica pode ser identidade sexual, política, performativa, amorosa, afectiva, emocional e o que mais se queira. Há tantas identidades como pessoas, mesmo que seja difícil para quem quer ter tudo em caixas separadas para colheres e garfos.

Fryne disse...

Naturaldisaster,

Obrigada pelo comentário, explicitaste bem a questão dessa imutabilidade da linguagem, que era também o que eu queria dizer.

Bi-Limonada disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Bi-Limonada disse...

É uma tristeza. Escrevo um post em defesa dos conceitos estanques (necessários para designar o que existe na nossa sociedade) de heterossexualidade, bissexualidade e homossexualidade e alguém da administração deste blog apaga-o minutos depois.
Mas repito, na esperança que não apaguem este comentário: Lésbica e bissexual não são a mesma coisa. Assumo-me perfeitamente como bissexual, nunca tive intenções de me fazer passar por lésbica porque sei que não o sou. Amo mulheres e homens por igual. O que faço na cama, se só durmo com ambos, com uns ou com outros ou com nenhuns não me define enquanto mulher. A bissexualidade é a capacidade e a predisposição para amar pessoas de ambos os sexos.
Quando a homossexualidade era vista como uma doença, como referiram anteriormente, um homem que era casado com uma mulher "por necessidade social" mas que se sentia atraído por homens (ainda que nunca tenha tido uma relação com algum) era heterossexual? Na visão da época, sim, claro, nem poderia ser de outra maneira. Hoje em dia é bastante claro que não.
Naturalmente, cada um faz uso da linguagem como bem entender. A minha opinião é, no entanto, que para evitar confusão e poder esclarecer um pouco melhor o mundo hetero sobre a nossa forma de existir no planeta terra (mundo hetero esse que é tão pouco receptivo à nossa forma de pensar/sentir), o ideal seria não confundir mais os termos. Eu faço asism. Cada um que faça como melhor entender, claro está.
Agora, senhor(a) administrador(a), veja lá se o comentário lhe dói assim tanto que sinta novamente necessidade de o apagar!

PolyPortugal disse...

Quaisquer comentários atentatórios contra pessoas ou grupos são e serão sempre liminarmente apagados. A liberdade de expressão necessita de ser acompanhada de responsabilidade.

Bi-Limonada disse...

As únicas coisas que diferenciam um "comentário atentatório" da livre expressão de uma opinião oposta são a sensibilidade e interpretação do receptor. Quando não se gosta do que se ouve/lê é fácil apontar o dedo e dizer "estou a ser discriminado, estão a atentar contra mim". Já pensou que, talvez, o que é dito aqui pode ser uma opinião contrária à minha e, portanto, atentatória contra a minha pessoa?
Continuo a defender o meu ponto de vista inicial: as farturas no Campo Grande são bem melhores que as da Feira do Livro.
Cordialmente,
Bi-Limonada
(também bi-polar. Ou tri-polar, se contarem com as farturas)

Caps disse...

Patético...

Fryne disse...

Bi-Limonada,
As identidades não são estanques, as palavras não são estanques, o que és hoje não serás tal e qual amanhã. Eu gosto dessa liberdade de auto-definição, do direito à minha identidade política sexual (que, como se vê bem, incomoda muita gente).

Daniel Cardoso disse...

«Na visão da época, sim, claro, nem poderia ser de outra maneira. Hoje em dia é bastante claro que não.»

Não, hoje em dia seria considerado homossexual, apesar de ter sexo com uma mulher... o que, para manter a coerência, deveria lançar a Bi-Limonada um rant...

Elisa disse...

Olá Fryne e Daniel

O blog de vcs foi um achado para mim. Sou brasileira, lésbica e de alma poliamorosa. Amo duas mulheres imensamente e sinto que seria uma relação maravilhosa se não fosse encarada por elas como algo impossivel. Ficamos juntas as tres por breves dias e a um ano elas tentam me rasgar ao meio, puxando uma de cada lado. Decidi que sairia desse triangulo de dispusta, mas não do poliamor e por isso peço a ajuda de vcs para poder ser feliz sendo eu mesma. ALguma dica, conselho, comunidade aqui no Brasil?? agradeço a atenção. Adorei o blog
bjus de carinho aos dois

Fryne disse...

Olá Elisa, muito obrigada pelo comentário :)

Lamento pela situação em que te encontras, imagino o quão difícil será lidar com esses sentimentos e o conflito com as pessoas que amas.

Há algumas coisas que te podem ajudar, o Daniel terá mais referências que te pode dar, mas da minha parte aconselho o livro The Ethical Slut (Dossie Easton e Janet Hardy) que pode ajudar-te neste momento a lidar com as diferentes vontades das pessoas envolvidas e a compreender qual a melhor maneira para ti de falar sobre o assunto e tentar resolver. Não há receitas mágicas, penso que o livro, assim como este blogue, são apoios que poderão ajudar, apesar disso.

Tens alguns links também aqui no blogue que podem servir de ajuda, nomeadamente (lado direito da página do blogue):

Poliamor PT
Our Laundry List
Polyamory FAQ
PolyPortugal - Grupo Facebook

Além da mailing list do PolyPortugal - http://groups.yahoo.com/group/polyportugal/ - a que também te podes juntar se quiseres.

Quanto a grupos no Brasil, eu pessoalmente não conheço nenhum, mas tenho a certeza que outras pessoas aqui te poderão dar alguma indicação.

Beijos,
Inês

fernanda disse...

Muito me contam! estou pasmada!