sexta-feira, 22 de julho de 2011

Vira o disco

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...e toca o mesmo.

Foi há uma semana que, na sequência de uma conversa via Facebook, Manuel Damas (presidente da CASA) decidiu utilizar o seu programa no Porto Canal (cujo tema já antes tinha sido definido como sendo "poliamor", para essa semana) para, à falta de melhor termo, avacalhar. Que é como quem diz: falou-se pouco (e mal) de poliamor, mas falou-se bastante de mim, das Panteras Rosa, bem como de outras pessoas que andam metidas no activismo.

Não vou pôr-me aqui a desmontar os argumentos simplistas do M.D. (quando se ataca alguém pela forma como anda vestido, já se está a raspar o fundo do barril) porque isso seria aborrecido (para vós e para mim). Mas vou aproveitar a questão para fazer um pouco de meta-análise a algumas coisas que por lá se ouviram, e que julgo serem dignas disso.

Primeira questão - tamanho.
A ideia está repetida até à exaustão que xs poliamorosxs são meia dúzia de gatxs pingadxs que por aqui andam, numa coisa que não tem visibilidade nem credibilidade. Mas a realidade permite-se discordar. Está neste momento, nos EUA, a ser discutido o fim do Defense of Marriage Act e, como não podia deixar de ser, o poliamor está a ser mencionado (explicitamente) como um dos grandes perigos caso se cometa o inominável crime de deixar as pessoas do mesmo sexo casarem entre si (alerta de ironia para quem está a dormir) - por virtude de um argumento slippery slope, "se fazemos X, vamos acabar com Y; logo, não podemos fazer X". No Canadá, a coisa está e tem estado nos tribunais, e mobilizado bastante atenção, criando uma espécie de movimento de avalanche de workshops e reconhecimento social. Nada disto é típico de um tema que, supostamente, só diz respeito a meia dúzia de pessoas... Indirectamente, a oposição ao poliamor (e, já agora, a quaisquer outras formas de não-monogamia consensual e responsável, ou a outras sexualidades ainda menos mainstream) é também a oposição ao avanço dos direitos civis em contexto geral - porque se estão a fornecer argumentos e força às pessoas que supostamente queremos evitar.

Segunda questão - identidade.
Foi atirada a ideia de que o poliamor não é uma identidade. Que é apenas um comportamento relacional ("como a violência doméstica" - que exemplo tão isento, não é?). Mas, agora perguntam vocês, afinal o que é uma identidade? Vamos simplificar: uma identidade é uma coisa com a qual nos identificamos. Algo que dizemos que somos. É um conjunto de atitudes, crenças, valores, padrões morais, hábitos - que são socialmente construídos em interacção connosco. Assim, ser do Rio Ave é uma identidade, ser mulher é uma identidade, ser homossexual é uma identidade e, espanto dos espantos, ser poliamorosx é uma identidade. A sério, isto não é ciência de foguetões. E não me venham com a coisa das identidades essenciais que nunca se mudam e já nascem connosco, porque senão eu zango-me e vou fazer queixinhas à Lisa Diamond.

Terceira questão - amor ou virar mesmo o disco.
Amor... Ah, o amor... essa coisa inefável, indefinível, incomportável... [som de disco riscado].
Alto lá com isso. O "amor" é, como tudo o resto, socialmente e culturalmente variável. Não se ama aqui da mesma maneira que se ama ali. É possível até historiografar a forma como amamos (ou amámos?). O amor, e as relações afectivas, são historicamente variáveis, culturalmente variáveis, espacialmente variáveis... acham que se ama da mesma maneira em todo o mundo, que se vivem as famílias da maneira como nós as vivemos, em todo o mundo? Então acham muito mal... O amor, como qualquer palavra, é polissémico. Muda. E, para não estar a repetir o último link, vai continuar a mudar. Se há coisa que me incomoda é aquele pessoal que acha que pode chegar e dizer: "O Amor Verdadeiro (TM) é assim, assim e assado" [tradução: heterossexual, monogâmico e monoamoroso]. Ou então, o pessoal que tira um dos assins ou assados, mas quer deixar o resto. Porque convém. Porque a cabecinha não dá para mais. Porque não vêem a parvoíce de fazer de conta que as coisas mudam mas não mudam... enfim.

Questão agregada
Porque é que o discurso do M.D. é tão significativo que lhe dedico mais um post? Precisamente pela sua falta de originalidade. O discurso do M.D. é importante na medida em que representa uma determinada postura mental, e não um trabalho de reflexão pessoal criativo. O M.D., com a sua postura contra o poliamor, representa a luta pela institucionalização normativa de algumas afectividades e algumas sexualidades, dentro de um quadro de trabalho essencialista, que defende um conjunto restrito de valores ao mesmo tempo que pretende deixar outros elementos (inseparáveis) intocados. Só que não dá para escolher. A vida não funciona assim - se nós questionamos umas coisas e não outras, eventualmente alguém vai dar pela contradição, pela incoerência, e começar a fazer força nesse sentido.
O M.D. afirma-se herói dos fracos e oprimidos, canta a Ode da Ascensão contra os poderes instituídos - mas o M.D. não quer eliminar a lógica dos poderes instituídos, quer ocupar a posição dos poderes instituídos (ou, vá lá, fazer parte do panteão). M.D. quer um lugar na História, e repetirá para isso o mesmo discurso de quem o queria deixar fora da História. Ele próprio afirma a importância da seriedade, da sobriedade. M.D. deseja comandar respeito, admiração.
M.D. esquece-se que a seriedade e a sobriedade vêm da estrutura patriarcal, machista, homofóbica, misógina e hierarquizante. (Ou não se esquece, e apenas não se importa.) M.D. quer dar cabo dessa estrutura - mas só de um bocadinho...

Vou-me armar em Nostradamus: não. serve. de. nada. A sério. Não serve de nada. As coisas mudam. E ou o pessoal faz parte da mudança, ou o pessoal acaba como este fulano. O paradigma está a mudar. A Gayle Rubin (porra, que eu farto-me de a citar!) já dizia que precisamos de uma nova ética sexual, baseada na forma como as pessoas se tratam mutuamente, e não baseada nos actos que praticam. E sabem que mais? Há quem ande aí a lutar por isso. Não importa o número de pagens que se tem à volta, a repetir o mesmo discurso em eco... Porque, carxs leitorxs, eu vou fundir a Emma Goldman e a Beatriz Preciado e dizer que o sistema patriarcal se caga todo quando se lhe apresenta uma revolução à queer, com dança, festa e sem sobriedade nenhuma. Ou então sou eu que me cago para ele.

Porque o sistema patriarcal É o sistema homofóbico É o sistema capitalista É o sistema racial É o sistema falogocêntrico É o sistema monogâmico É o sistema nacionalista É o sistema de género/sexo binarista... e É uma grande cagada.


Agora, inspirado por uma amiga, deixo-vos uma reflexão profunda, que requer, no entanto, algumas mudanças de apelido...

Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do "Século" a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta "Júlio Dantas" e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas... E limonadas Dantas- Magnésia.

E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.

- "Manifesto Anti-Dantas", José Almada de Negreiros

5 comentários:

Anónimo disse...

Gostei da resposta ao M.D. Problema está que as tantas o autor acaba por repetir o mesmo erro de M.D., isto é responde dogmatismo e intolerância com o mesmo! o que é que poliamor tem a haver com capitalismo, nacionalismo e etc? assim não vamos lá quando só se pode ser poliamor se se fôr ao mesmo tempo de extrema-esquerda.

Daniel Cardoso disse...

Caro Anónimo,

O poliamor tem tudo a ver com capitalismo, nacionalismo, etc etc etc. Os sistemas sociais existem em interacção inter-dependente. Esse é o meu ponto fundamental que, creio, não tem que ver com intolerância.

A discriminação sexual, relacional, afectiva, etc. é composta de todas aquelas componentes (e outras mais que não me terei lembrado) e não é por isso possível agir face a uma sem alterar outras.

Isto não quer dizer que vai ser o poliamor a mandar abaixo o capitalismo, ou coisa que o valha. Mas quer dizer que - por exemplo, ao nível da sustentabilidade de recursos planetários - famílias poly e famílias mono seguem modelos (micro-)económicos diferentes, com consequências para a prática do dia-a-dia do capitalismo. Isto não se trata de ser de extrema-esquerda, direita ou seja o que for. Simplesmente, grupos de pessoas a viver numa mesma casa fazem uma gestão de recursos em de forma diferente que, por exemplo, apenas duas pessoas, ou apenas uma pessoa.

Espero ter esclarecido.

Anónimo disse...

Caro Daniel Cardoso:

O seu ponto de vista ficou esclarecido, acontece que discordo dele. É uma leitura marxista da realidade em que está a incluir agora a vertente sexual\afectiva. Acontece que sou um pastor Budista, que há mais de 30 anos anda a defender publicamente o direito de todos os que tem uma orientação sexual\afectiva diferente da maioria monogâmica (isto numa altura quando poucos o faziam). Sou anti-fascista e anti-comunista (vivi esses horrores em portugal), sou a favor da economia do mercado (o socialismo foi sempre um desastre, Portugal é um bom exemplo),e sou ambientalista e poliamor (é assim que se diz?)desde sempre. Se quero que a sociedade respeite a minha orientação sexual\afectiva, então tenho também de respeitar a orientação sexual\afectiva dos outros não é? Ou agora ser monógamo é também "politicamente incorrecto"? e só se é poliamor se tivermos uma determinada orientação politica\económica? Só a verdadeira tolerância assente na compaixão e empatia por todos os seres senti-entes abrirá as mentes e corações para o respeito e aceitação mutua entre todos nós. Estamos todos metidos no mesmo barco não é? De qualquer forma, e como disse, aparte esta discordância, gostei do seu artigo. Um abraço fraternal
Já agora identifico-me, o meu nome é Suriananda.

Daniel Cardoso disse...

Caro Suriananda,

Creio que é o primeiro budista que conheço que, ao mesmo tempo, suporta a economia de mercado - estou intrigado (e não estou, de forma alguma a ser irónico).

Se é fundamental aceitarmos a "compaixão e empatia por todos os seres senti-entes", como é que coordena isso com a máxima capitalista de que cada pessoa só se realiza se superar e vencer todos os outros seres senti-entes?

Eu não pretendi dizer que é preciso ser desta ou daquela orientação política e económica para se ser poliamoroso. Apenas que ser-se poliamoroso implica, regra geral, mas nem sempre uma reorganização do dia-a-dia que é parcialmente anátema aos princípios de base do capitalismo puro.

Da mesma forma, imaginando uma sociedade constituída totalmente por budistas, não vejo como seria possível um sistema capitalista sobreviver ou sequer florescer. Não sou, de todo, especialista na matéria, mas parece-me que um mosteiro budista é a antítese de, por exemplo, uma fábrica capitalista.

Saudações,
Daniel

PS - Não sou marxista. :-)

Anónimo disse...

Caro Daniel Cardoso:

Pelos vistos não conhece muitos budistas! A base da economia do mercado não é "cada pessoa só se realiza se superar e vencer todos os outros seres senti-entes", essa máxima não existe em lado nenhum, em nenhum livro que defenda o capitalismo, e muito menos nos textos do liberalismo clássico que defendem a máxima da liberdade individual (e não há liberdade individual sem liberdade económica, não há maior escravidão do que sermos todos servos de um estado omnipresente). Aliás basta ir a qualquer ranking imparcial sobre qualidade de vida dos países do mundo (há várias incluindo uma muito boa das Nações Unidas)e no topo estão aqueles países que tem fortes economias de mercado juntamente evidentemente com forte regulação financeira: os países escandinavos, Holanda (onde vivi um ano), Austrália, Nova Zelândia e Canadá (onde nasci e onde presentemente vivo). Não conheço nenhum país de economia socialista\comunista no topo desses rankings. Pode-se criar um sistema económico melhor do que a economia de mercado? Tudo é possível, mas até se inventar algum temos que trabalhar com o que temos ou não?

O Budismo não tem nada a ver com o tipo de sistema politico ou económico em que se viva. O Budismo pretende libertar o individuo da verdadeira causa do sofrimento humano, isto é dos apego e desejos ardentes (a palavra inglesa "craving" exprime melhor este tipo de desejo). O Budismo não pretende criar qualquer tipo de utopia terrestre (aliás todas as tentativas de criar utopias terrestres acabaram sempre em verdadeiras tragédias humanas). O Budismo é profundamente realista e prático, a partir do que realmente somos, o Budismo apresenta toda uma série de práticas (e o Budismo é essencialmente prática não fé ou crença) que nos podem levar a tornar-nos melhores seres humanos e eventualmente à verdadeira libertação.

Por isso é evidente que uma "fábrica capitalista" (trabalhei muitos anos nelas por isso conheço bem essa realidade), não tem nada a ver com mosteiros budistas (vivi 3 anos em mosteiros por isso é uma realidade que também conheço bem). Mas os mosteiros existem e funcionam nem sociedades capitalistas não é? É evidente que se os princípios e valores Budistas se tornarem verdadeiramente dominantes nas sociedades humanas, isso terá um impacto na sociedade em geral (e na forma como relacionar-mo-nos todos uns com os outros, inclusivamente do ponto de vista económico). Mas até isso acontecer (ou se acontecerá)...

Voltando à questão do poliamor, li à dias num artigo que os países onde o poliamor tem mais aderentes são o Canadá, Alemanha (ambos capitalistas mas com forte estado sociais) e os EUA (mais "capitalismo puro" como você lhe chama). Como encaixamos esta informação com a sua regra geral?

Continuo a pensar (mas é evidente uma opinião muito pessoal) que a defesa dos nossos direitos cívicos enquanto polimorosos, não pode ser feita contra ninguém nem contra nenhum sistema politico ou económico (e não estou a dizer que essa fosse a sua intenção como você já esclareceu), mas sim porque numa sociedade livre e democrática, nós devemos ter os MESMOS DIREITOS QUE TODOS OS OUTROS CIDADÃOS TEM. É assim que aqui no Canadá estamos a lutar pelos nossos direitos. Na minha opinião a pior coisa que nos pode acontecer é enfiarmos-nos num ghetto minoritário cultural ou politico.

Esta vai longa e espero não tê-lo maçado muito, queria simplesmente esclarecer alguns pontos. Penso também que é fundamental haver entra poliamorosos uma permanente "conversa" sobre a nossa vivência e o que pretendemos da vida e da sociedade em que vivemos. A união faz a força como se costuma dizer, e no nosso caso mais ainda.

saudações:
Suriananda

PS: Ainda bem! lol