"Agora, ao contrário, estamos em casa. Mas o em-casa não preexiste: foi preciso traçar um círculo em torno do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado. (…) Eis que as forças do caos são mantidas no exterior tanto quanto possível e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida, de uma obra a ser feita. Há toda uma actividade de selecção aí, de eliminação, de extracção, para que as forças íntimas terrestres, as forças interiores da terra, não sejam submersas, para que elas possam resistir ou até tomar algo emprestado do caos através do filtro ou do crivo do espaço traçado. (…) Agora, enfim, entreabrimos o círculo, nós o abrimos, deixamos alguém entrar, chamamos alguém, ou então nós mesmos vamos para fora, nos lançamos. Não abrimos o círculo do lado onde vêm acumular-se as antigas forças do caos, mas numa outra região, criada pelo próprio círculo. Como se o círculo tendesse a abrir-se para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga."
Começa quando fechas a porta do quarto para poderes ouvir a tua música. A música é instrumento da tua territorialização. Por exemplo, o ostinato da equipa de futebol proclamando "Ahhh Portugal olé, portugal olé, portugal olé, portugal olé" e demarcando as fronteiras. Ou "First I was afraid I was petrified" ou "A formiga no carreiro vinha em sentido contrário". O som afirma-nos, é o nosso canto específico, anunciando à passarada a música da nossa territorialidade. Pode por isso ser um acto político tremendo. Verdi, elevado a hino nacional, afirmava subtilmente a identidade resistindo na ocupação austríaca, apenas perceptível a quem por dentro estava e por isso mesmo duplamente reconhecível. A música diz-nos a quem pertencemos, a que lugar. Gaitas de foles na batalha, tambores-mor, etc. Ouvir música não é simplesmente ouvir música. Hinos nazis, por exemplo, são proibidos.
Não curto a homogeneidade, tal como não curto uniformes. Não curto nada que me prive da minha canção e também só acredito num deus que dance e não num que esteja fechado na sua biblioteca, na hipertrofia da sua razão. Deixei há muito tempo as utopias e prefiro a polaridade das fronteiras. Negocio a posição dos baluartes e não acredito em nada que diga "Pensa como eu". A igualdade aborrece-me, não puxa por mim. Eu prefiro os beijos entre os contrastes, a aceitação e o enamoramento dos mesmos.
Na medida em que estabeleço o meu território (como quando fechava a porta do quarto para poder ouvir a minha música no máximo, imbuindo-me de mim mesma), é-me muito mais fácil abrir o círculo à intersecção com o outro. Quanto mais sólida a minha fronteira mais me permite o jogo da negociação, salvando-me em simultâneo do da ocupação. Não creio na homogeneidade, na ausência de fronteiras sobre a Terra, na utopia da uniformidade, condenada que a vejo à subversão. Quer dizer, eu não uso um uniforme (Na tropa põem-se os soldados a cantar a mesma música quando marcham, esvaziando o cérebro de qualquer tentação-conteúdo da sua individualidade).
Eu creio na dinâmica, na diferença, na evolução dialéctica. Eu creio em fechar a porta do quarto para regressar depois à sala. Eu não curto paraísos de aparente standartização, nivelados por máquinas compressoras. Eu não curto normatismos, eu não curto sectarismos, eu não curto "a minha razão tem mais razão que tua".
Retorno ao texto inicial. Perante a fronteira encontro duas hipóteses:
1 - Fechar o círculo impedindo as forças do caos, organizando um espaço limitado que permita a obra ser construída, seleccionando, extraindo e impedindo a submersão.
2 - Abrir o círculo a partir de si mesmo, chamando alguém e abrindo-nos para o futuro em função das forças em obra que ele abriga - espécie de fase consequente ou simultânea (ainda não percebi) ao estabelecimento de um "centro", de uma canção.
É na medida em que inscrevo o meu centro no chão e defino um lugar para mim mesma, que me permito ao cruzamento de fronteiras, o qual não serve senão para me alargar, mediante agentes de negociação: saliva, ideias, canções e conflitos que compõem a minha individuação. Não acredito em nada que se feche eternamente, estando jamais preparado para abrir fronteiras à chegada de um estranho e que me diga "faz como te mando, eu sei".Enquanto feminista, eu abomino a exclusão, senão no que directamente ameace o direito à minha/nossa integridade. Eu respeito e amo o que de mim difere, tal como amo o direito a distinguir-me de alguém. Jamais aceitarei ser uma "extensão" desprovida da sua opinião e jamais aceitarei que o mesmo se passe a alguém, ainda que de mim discorde. É por acreditar tanto no amor e na aceitação que aqui estou, neste grupo, a escrever-vos e a fazer pontes com o que a mim é estranho. É porque acredito nas diferenças, que acredito depois na união.
O texto acima citado é da dupla Deleuze/Guattari, que eu demoro meses a ler, pois dou-me mal com certa tendência poética encontrada nesta escrita. É um excerto da tradução brasileira do Mille plateaux, que é a que se encontra disponível online. Recentemente, a Assírio publicou uma tradução em português europeu, com o título Mil planaltos.
Começa quando fechas a porta do quarto para poderes ouvir a tua música. A música é instrumento da tua territorialização. Por exemplo, o ostinato da equipa de futebol proclamando "Ahhh Portugal olé, portugal olé, portugal olé, portugal olé" e demarcando as fronteiras. Ou "First I was afraid I was petrified" ou "A formiga no carreiro vinha em sentido contrário". O som afirma-nos, é o nosso canto específico, anunciando à passarada a música da nossa territorialidade. Pode por isso ser um acto político tremendo. Verdi, elevado a hino nacional, afirmava subtilmente a identidade resistindo na ocupação austríaca, apenas perceptível a quem por dentro estava e por isso mesmo duplamente reconhecível. A música diz-nos a quem pertencemos, a que lugar. Gaitas de foles na batalha, tambores-mor, etc. Ouvir música não é simplesmente ouvir música. Hinos nazis, por exemplo, são proibidos.
Não curto a homogeneidade, tal como não curto uniformes. Não curto nada que me prive da minha canção e também só acredito num deus que dance e não num que esteja fechado na sua biblioteca, na hipertrofia da sua razão. Deixei há muito tempo as utopias e prefiro a polaridade das fronteiras. Negocio a posição dos baluartes e não acredito em nada que diga "Pensa como eu". A igualdade aborrece-me, não puxa por mim. Eu prefiro os beijos entre os contrastes, a aceitação e o enamoramento dos mesmos.
Na medida em que estabeleço o meu território (como quando fechava a porta do quarto para poder ouvir a minha música no máximo, imbuindo-me de mim mesma), é-me muito mais fácil abrir o círculo à intersecção com o outro. Quanto mais sólida a minha fronteira mais me permite o jogo da negociação, salvando-me em simultâneo do da ocupação. Não creio na homogeneidade, na ausência de fronteiras sobre a Terra, na utopia da uniformidade, condenada que a vejo à subversão. Quer dizer, eu não uso um uniforme (Na tropa põem-se os soldados a cantar a mesma música quando marcham, esvaziando o cérebro de qualquer tentação-conteúdo da sua individualidade).
Eu creio na dinâmica, na diferença, na evolução dialéctica. Eu creio em fechar a porta do quarto para regressar depois à sala. Eu não curto paraísos de aparente standartização, nivelados por máquinas compressoras. Eu não curto normatismos, eu não curto sectarismos, eu não curto "a minha razão tem mais razão que tua".
Retorno ao texto inicial. Perante a fronteira encontro duas hipóteses:
1 - Fechar o círculo impedindo as forças do caos, organizando um espaço limitado que permita a obra ser construída, seleccionando, extraindo e impedindo a submersão.
2 - Abrir o círculo a partir de si mesmo, chamando alguém e abrindo-nos para o futuro em função das forças em obra que ele abriga - espécie de fase consequente ou simultânea (ainda não percebi) ao estabelecimento de um "centro", de uma canção.
É na medida em que inscrevo o meu centro no chão e defino um lugar para mim mesma, que me permito ao cruzamento de fronteiras, o qual não serve senão para me alargar, mediante agentes de negociação: saliva, ideias, canções e conflitos que compõem a minha individuação. Não acredito em nada que se feche eternamente, estando jamais preparado para abrir fronteiras à chegada de um estranho e que me diga "faz como te mando, eu sei".Enquanto feminista, eu abomino a exclusão, senão no que directamente ameace o direito à minha/nossa integridade. Eu respeito e amo o que de mim difere, tal como amo o direito a distinguir-me de alguém. Jamais aceitarei ser uma "extensão" desprovida da sua opinião e jamais aceitarei que o mesmo se passe a alguém, ainda que de mim discorde. É por acreditar tanto no amor e na aceitação que aqui estou, neste grupo, a escrever-vos e a fazer pontes com o que a mim é estranho. É porque acredito nas diferenças, que acredito depois na união.
O texto acima citado é da dupla Deleuze/Guattari, que eu demoro meses a ler, pois dou-me mal com certa tendência poética encontrada nesta escrita. É um excerto da tradução brasileira do Mille plateaux, que é a que se encontra disponível online. Recentemente, a Assírio publicou uma tradução em português europeu, com o título Mil planaltos.
2 comentários:
Há uma edição em Português do Brasil, o que quer dizer que dificilmente haverá uma de uma editora portuguesa...
Apesar de achar que há muitos momentos em que a razão de um tem mais razão que a do outro, gostei bastante do texto; e decididamente bem mais do que o original.
Conseguiste passar certas experiências subjectivas com clareza, e as metáforas que usaste como a saliva como agente de negociação foi-me grata.
Jinhas.
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