Há uns dias teve lugar um evento que pretendeu discutir as linhas de cruzamento entre poliamor e feminismos, um tema sobre o qual eu e outras pessoas já escrevemos, noutro contexto.
Algumas das questões mais importantes lá mencionadas, para além do que está acima, têm que ver com:
- posse (do corpo);
- capitalismo;
- ligações ao amor livre dos anos 60/70.
É bom começar com o óbvio: sim, o poliamor parte do princípio que as pessoas são donas de si mesmas. E apesar de a questão da posse do corpo ser um tema querido e fundamental para o feminismo, não me parece - espanto! - que seja o mais central no tema do poliamor. Porque mais além da posse do corpo está a posse do self, uma ideia de auto-determinação, de auto-sustentabilidade psico-emocional. Hoje em dia, as mulheres da sociedade ocidental vão, pouco a pouco, adquirindo autonomia financeira, habitacional, corporal mas, se viverem ainda na ideia que a sua pessoalidade necessita de um complemento (frequentemente masculino) para ser total, então a liberdade de corpo não evita uma liberdade mental, psicológica, emocional. A não-monogamia não-responsável também é uma forma de afirmação da posse que cada um tem do seu corpo - mas com a não-monogamia responsável vem a afirmação da posse da mente e sentimentos de cada um. As piores grilhetas são as que não se vêem, não se sentem, as que são auto-impostas.
Ligação com o capitalismo (entenda-se aqui o poliamor como potencialidade de contrariar/derrotar/fragilizar o capitalismo): sim, talvez, quem sabe? Suponho que algumas configurações familiares poliamorosas (ou, mais estritamente, algumas formas de organização dos pormenores de vivência em família no poliamor) possam agir de forma a contrariar ou negar as estruturas de poder económico ou social instituídas pelo sistema capitalista. Defendo também que a ideia de família pós-familiar vem contrariar claramente um dos propósitos fundamentais do casamento como contrato social: a passagem de propriedade através de uma linha biologicamente definida (ou que assim se supunha, diga-se). Mas a passagem e a gestão da propriedade (privada) não deixam de estar dentro de uma das preocupações do poliamor, e há imensas páginas por aí sobre como gerir finanças, despesas, etc. Portanto, eu diria que o poliamor está mais virado para tentar lidar com as realidades e as contradições do agora, do que a construir um mundo novo e fantástico sem capitalismo daqui a god(dess)-knows-how-long. Mais uma vez, há que relembrar que o poliamor se tem preocupado, do ponto de vista argumentativo, retórico, em autonomizar o campo das emoções para lhes dar um destaque, um enfoque especial. Já repararam que às vezes parece mais difícil falar sobre sentimentos do que sobre sexo, por exemplo? ("Eh pá, que grande queca que eu dei ontem! versus Ontem tive uma discussão que me deixou mesmo abalado, até acabei a chorar, já nem sabia muito bem o que fazer...") Convenhamos - se eu vivo numa casa com mais (por exemplo) duas ou três pessoas e, por alguma razão, as coisas correm meeeesmo mal, eu quero ter a certeza que me posso ir embora sem ter que hipotecar a alma para isso mesmo.
Quanto a ligações com o amor livre... bem, já o Franklin Veaux dizia que a coisa não estava exactamente ligada. Porque o amor livre (que, vá lá, era mais queca livre) era também um modelo que, em si, era extremamente restritivo. Por um lado, anulava a individualidade. Por outro, anulava a pluralidade. As pessoas tinham que se comportar de acordo com um conjunto nada flexível de expectativas inquestionáveis, porque era essa a forma de lutar contra o sistema. Não seguir a norma era ser reaccionário. O que me parece bastante com a normativização que eu quero evitar, quando escolho o poliamor. No poliamor, é suposto que as pessoas debatam e discutam as suas regras e encontrem a forma de estar em relações que convenha ao máximo a toda a gente envolvida. O que quer dizer que duas formas de poliamor podem ser mutuamente incompatíveis mas nem por isso uma ou outra terá que deixar de ser poliamor. E se o amor livre é assim tão livre, porque é que só há uma maneira de ser livre? Não me parece grande liberdade...
2 comentários:
Daniel, obrigada pelo resumo/reflexão! Tivessemos sempre quem o fizesse para todas as tertúlias :)
Embora compreenda o que queres dizer no primeiro ponto, acho que parte de uma ideia de separação corpo-emoção que não está presente quando xs feministas falam de corpo.
Quando as feministas dos anos 70, e xs actuais, falam de corpo significa usualmente "a pessoa inteira", com as emoções, o "self"; corpo é tudo o que somos/vamos sendo.
Salomé, obrigado eu pelo convite.
Eu entendo, na linha de uma análise mais a puxar a biopolítica, que temos que ser capazes de separar ambas as coisas do ponto de vista analítico. Não para reinstaurar as diferenças entre corpo/mente, impuro/puro, mas sim para conseguir entender de forma mais fina a maneira como o espaço psico-emocional e a fisicalidade se moldam e influenciam mutuamente.
Num mundo onde, felizmente, as mulheres começam a ganhar independência económica, a monogamia hegemónica, normativa e patriarcal - no quanto ela é um ideal e um alvo a atingir, e não um conjunto de práticas concretas - mantém-se e reproduz-se também por virtude de uma retórica psicológica, essencialista ("o Verdadeiro Amor é: ..."). A mulher poderia viver sozinha? Sim. A mulher pode utilizar o seu corpo como lhe aprouver? Sim. Mas se as relações de dependência (de codependência, na verdade, como aponta o Giddens) se mantêm, não é por uma questão estritamente corporal. É pela tal questão emocional, psicológica, que depois, então sim, reverte para uma questão biopolítica, corporal.
Porque também os homens de outrora (e de hoje!), que não estiveram/estão sujeitos ao mesmo tipo de subjugação corporal e financeira, ainda assim embarcam nessa tal interacção de codependência, e entendem-se dentro dela, e naturalizam-na (mau grado o facto de esta não os afectar da mesma forma).
Espero não ter complicado com a minha tentativa de simplificar... ;-)
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