No sábado passado, o Jorge estreou-se aqui com um texto onde mencionava a famosa canção Eu tenho dois amores, popularizada em Portugal pelo Marco Paulo.
Um assunto de tamanha importância merece investigação séria.
Por isso aqui vai informação fidedigna: a melodia do Eu tenho dois amores é duns senhores napolitanos dos anos 50 (o autor de livros infantis Giuseppe Fanciulli e o multifacetado Nicola Salerno, também conhecido por Nisa, autor de sucessos como Non ho l'età).
O tema chama-se Guaglione:
Este Guaglione deu origem às mais variadas versões:
(um filme do Dean Martin)
(o francesíssimo Bambino da Dalida)
(uma coisa maravilhosa de Bollywood, em hindi)
e finalmente
(um xarope dum brasileiro chamado Fernando Mendes, já com a letra que viria a ser usada pelo Marco Paulo)
Diverti-me a descobrir estas pérolas, é verdade. Mas o que me levou a escrever aqui em vez de o fazer num simples comentário ao post do Jorge foi precisamente a letra, que, lá para o meio, diz assim:
Que este encanto não se acabe
E eu já pensei tanta vez
Pois enquanto ninguém sabe
Somos felizes os três
Seguramente muito pouco poliamoroso.
Citando o que o próprio Marco Paulo uma vez disse acerca desta música, "a letra espreme-se e não deita sumo". E eu acrescentaria: a loira e a morena poderão até ser felizes mas, se um dia alguma delas descobre, deita sangue. Para quê correr riscos?
A abordagem tradicional é de facto, muito masculinamente (seja lá isso o que for), continuar a enganar a loira e a morena, na esperança de que não descubram e continuem assim felizes os três… Ou, muito femininamente (raios partam estes estereótipos), desistir de um dos dois amores e escolher apenas um, vá-se lá saber com base em que critérios. Não seria mais simples, já para não dizer mais respeitador, ser honesto? Não será precisamente a isso que devia chamar-se ser fiel? Ser fiel a um amigo é não lhe mentir. Mas ser fiel a um amante, nesta nossa estranha sociedade, é afinal mentirmo-nos a nós próprios, negarmo-nos o direito a viver em pleno os nossos sentimentos.
4 comentários:
E facilmente se alteraria a letra para algo bem mais poli:
Que este encanto não se acabe
E eu já pensei tanta vez
Porque se toda a gente sabe
Somos felizes os três
O escrito já ia longo e não me apeteceu estar a meter mais paleio para dar crédito a quem o merece. A fonte essencial a partir de onde consegui facilmente chegar a tudo o resto foi um post de uma tal Sara Butterfly, que o Google gentilmente me deu a conhecer quando lhe perguntei
"dois amores" "marco paulo" música letra
O post: http://sarabutterfly.blogs.sapo.pt/4124.html
Excelente artigo. Obrigado.
Pelo que me pareceu a única versão que tem a letra 'poli' é a do Marco Paulo, verdade?
Segundo a minha interpretação não fica claro que elas não saibam entre elas da situação.
É sim um facto de as pessoas em geral não o sabem.
E isto leva-me a outra pergunta:
Será a divulgação uma característica implícita do poliamor?
(Parabéns pelo blog e pelos artigos)
Obrigado. A letra onde o narrador fala das suas duas amantes (uma letra que não tem nada de poli, insisto) é defacto a do brasileiro Fernando Mendes, que foi depois ligeiramente melhorada pelo agente do Marco Paulo, tanto quanto sei.
Em princípio, de cada vez que a música do Marco Paulo passa na rádio ou é vendida em CD, os herdeiros dos autores napolitanos recebem uma diminuta percentagem, através da congénere italiana da nossa Sociedade Portuguesa de Autores.
A honestidade é uma característica implícita do poliamor; a divulgação é talvez uma prima em segundo grau da honestidade.
(Nota: as más-línguas dirão que a chateza ou maçadoria é também uma prima da verdade; pessoalmente, saber que o outro sabe dá-me muito mais desejo do que saber que o outro não sabe — ainda hei-de escrever aqui sobre isso.)
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