Foi há uns poucos dias que vi anunciada a 3ª Marcha contra a
Bifobia, Intersexofobia, Homofobia, Lesbofobia, Polifobia e Transfobia. Tanto
quanto sei, é a primeira vez que uma manifestação pública se dirige, no nome, à
questão específica do poliamor (e daí o “polifobia”, embora eu costume escrever
polyfobia só mesmo para não criar
confusões – coisa que nem sei muito bem se resulta ou não).
Esta atitude, por parte da PATH, é de louvar, não apenas
pela inclusão do poliamor no nome, mas pelo desdobrar, explicitar e visibilizar
também da intersexualidade (e, já agora, dos elementos mais comuns da sigla
LGBT).
Por outro lado, convém lembrar e reflectir sobre o que é
esta coisa da “polyfobia”, já que a palavra será certamente ainda desconhecida
de muita gente (como “poliamor” o é). Claramente, todas estas fobias pretendem
fazer um paralelismo e dar continuidade à ideia de homofobia, a primeira a aparecer historicamente enquanto palavra. O
uso da palavra em contexto escrito surgiu em 1971, pela mão de George Weinberg,
que pretendia assim significar o medo de estar perto de pessoas homossexuais
mas também, e significativamente, o medo que essa proximidade pudesse funcionar
como um vector de contágio e, assim, atacar a heterossexualidade das pessoas
homofóbicas. Este medo iria portanto ter as características de outros tipos de
fobias, gerando reacções irracionais, violentas, cujo objectivo seria a
protecção de um risco inexistente de contágio – uma abordagem psicologizante do
fenómeno.
O termo homofobia e seus derivados (presentes no nome da
marcha) marcaram, na altura, um ponto de viragem importante: o recentrar da
génese do problema; a deslocação retórica do “problema da homossexualidade”
para o “problema da homofobia”, quase que diametralmente oposto. Porém, isto
também implica um problema: esta viragem é feita mantendo os termos de base da
situação. Troca-se uma psicologização por outra. Essa psicologização acaba a
ocultar, até certo ponto, o nível supra-pessoal da “homofobia”, na medida em
que a violência não é apenas pessoal e subjectiva, mas também estrutural e
institucional.
E, não obstante a importância de pensarmos nas palavras que
usamos, e no peso que elas têm, não deixa de ser verdade que o próprio
significado de “homofobia” e suas variantes se tem vindo a alterar. Quando
falamos de homofobia institucional, quando falamos de homofobia estrutural –
podemos estar a usar a mesma palavra, mas não porque acreditemos que uma
instituição tem necessariamente uma psique. Antes, e não obstante o continuado
uso da “fobia”, temos vindo a desenvolver um pensamento sobre como a
hostilidade não é apenas pessoal, nem é apenas contextual. Podemos, por
exemplo, relacionar este medo com outros elementos: nomeadamente, com o papel
que o Outro é feito ocupar no questionar das certezas identitárias e das
mundo-visões do “Eu”.
Mais uma coisa: no meio disto tudo, nunca é demais lembrar –
a hostilidade contra as pessoas poliamorosas e contra a ideia abstracta de
poliamor existe.
Existe quando alguém nos deseja uma “feliz vida com SIDA”.
Ou quando alguém avisa uma pessoa com quem temos uma relação que ela vai
apanhar SIDA. (Para quem estiver a pensar “Bem, se calhar ele é seropositivo”:
não, não sou; e ainda que o fosse, este é um comentário que é hostil tanto para
pessoas poly, como para pessoas seropositivas.)
Existe quando nos dizem que viver assim é “animalesco”.
Existe quando vamos na rua e temos que ouvir comentários machistas
a serem-nos dirigidos, e não nos sentimos segurxs.
Existe quando beijar duas pessoas ao mesmo tempo deixa uma
dezena a olhar para nós.
Existe quando apresentam queixa de nós no trabalho por nos
afirmarmos publicamente como poly.
Existe quando centros de apoio a pessoas LGBT são liderados por pessoas que repetidamente demonstram comportamentos discriminatórios.
E existe em tantas, tantas outras situações…
Não quero fazer deste um texto triste. Quero fazer deste um
texto feliz – porque estou feliz, porque me sinto feliz por haver quem avance,
quem inove, quem alargue horizontes.
Obrigado, PATH. Obrigado pela tertúlia para a qual me
convidaram. Obrigado por lutarem por mim também. De todo o meu coração (coração
de poly!), obrigado.
4 comentários:
Daniel , fico contente como tu por a marcha de Coimbra ser inclusiva do Poliamor.Sei das discriminações que falas e acho importante fazer a ascenção social do poliamor como uma outra forma vivêncial.Não estou tão de acordo na equiparação que fazes das fobias. Fobia não é um medo qualquer é um medo irracional ,doentio ,preverso tomando mesmo o sentido de ódio e que extremado tem levado minorias sexuais à preseguição e mesmo à morte.Uma questão são as pessoas e as suas sexualidades que não as escolhem arbitráriamente outra é o direito a cada pessoa organizar os seus amores como quiser e entender e aqui há uma clara escolha ,uma livre arbitrariedade ainda que estigmatizada.Penso que é exagerada a palavra polifobia.E penso também que ao usá-la pode-se incorrer na banalização/esvaziamento das palavras,homofobia e transfobia usadas para designar crimes/mortes de ódio ou crimes homófóbicos ou trans*fóbicos.
De resto digo vivam todas as formas de amar ,sejam elas Poliamorosas ou monogâmicas.
José, obrigado pelo comentário. Mas gostaria de levantar algumas questões quanto ao que dizes.
Em primeiro lugar, uma parte do meu texto aponta para a ideia que falar de fobia pode não ser boa ideia - precisamos de um termo melhor, de um termo que não seja patologizante, para combater a própria ideia de patologia. Além disto, espero que não seja preciso alguém morrer para existir a legitimidade de usar a palavra "polyfobia". Já houve pessoas a ficar sem filhxs, sem casa, sem empregos, sem amigxs...
Nestas coisas, creio que estaremos a dar um tiro no pé se começarmos com hierarquizações. Sim, é verdade que esta hostilidade (palavra que prefiro a -fobia) se revela de diferentes maneiras em diferentes contextos. Mas estas diferenças também podem ser explicáveis, por exemplo, pelo grau de visibilidade de uns e outros fenómenos. Se a visibilidade do poly está a aumentar, não será melhor fazer isso já com o pensamento no discurso que contraria a hostilidade ao poliamor?
Eu não tenho medo da banalização das -fobias, porque não a vejo como realista, dada toda a história de invenção de outras -fobias que nunca tiveram esse efeito, mas tenho medo da banalização da violência pela sua hierarquização em violência má e violência menos má. Toda a violência identitária é igualmente má, enquanto estrutura de poder - embora possam existir actos de demonstração dessa violência com consequências mais ou menos gravosas. Por tudo isto, a palavra polyfobia não me parece exagerada. Violência é violência, ódio é ódio - mesmo que ainda não tenha morrido ninguém.
Em segundo lugar, é altamente equívoco e problemático colocar a orientação sexual do lado da não-escolha, e o poliamor do lado da escolha. Por duas razões: em primeiro lugar, alguns dos estudos mais recentes sobre sexualidade mostram a sua fluidez e permeabilidade a factores contextuais sócio-culturais; em segundo lugar, todas as sexualidades são construções; em terceiro lugar, conheço muitas pessoas poliamorosas que dizem que não escolheram o poliamor, que "nasceram assim". E eu tão depressa vou contrariar esse discurso como vou contrariar o mesmíssimo discurso vindo da parte de uma lésbica, gay, ou afins.
A génese das nossas sexualidades (ou a verdade sobre essa génese) é uma armadilha. A pergunta sobre "de onde vem" só serve para nos dividir e expor. Se nascemos assim, então talvez seja genético - quem sabe, com terapia genética, conseguimos curar a homossexualidade! Ou o poliamor! Se não nascemos assim, então uma terapiazinha comportamental e também se cura a homossexualidade ou o poliamor...
Não, eu não quero ir por aí. Não me interessa de onde veio, é irrelevante. Se algumas pessoas escolheram o poly e outras nasceram poly; se algumas pessoas escolheram ter comportamentos identificados como "homossexuais" e outras agem de acordo com o que sentem desde que 'nasceram' - a mim, o que me interessa é a validade ética de todas as escolhas, e a sua defesa, não a sua génese.
E claro, vivam todas as sexualidades consensuais reflexivas.
Daniel eu digo que não escolhi a minha sexualidade e não nego os aspectos construtivos da mesma ,não sou essencialista nem estou a defender um determinismo bilógico. Sei que a Antropologia e a Sociologia teem construído todo um saber que não o nego mas que em me leva a levantar muitas questões .Penso que não me entendes-te . Não escolhi enquanto processo consciente que a escolha em liberdade implica,assim como não escolhi a cor branca que veste o meu corpo nem o pai,nem a mãe nem a côr dos olhos. Tive a sorte apenas de um dia me aperceber que gostava de meninos como eu !
Eu também não escolhi apaixonar-me por mais de uma pessoa ao mesmo tempo :)
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