Portugal inteiro, ou perto disso, por esta altura já sabe
que o Pedro, da Casa dos Segredos 2 (programa da TVI) “sofre de poliamor”.
Longe de mim não gostar da disseminação, mas a frase em si levou-me a pensar no
que é “sofrer de…” alguma coisa, e como é que isso precisa de ser lido historicamente
e ao nível de uma política das identidades.
Há muito tempo atrás, e para dar um exemplo como poderia dar
vários outros, a figura do homossexual foi criada. O homossexual foi criado. E foi criado precisamente dentro do
contexto de uma patologia. A homossexualidade era uma doença, uma anormalidade
que podia ser (talvez) curada, tratada, cuidada – mas, acima de tudo, estudada.
É um ponto que tanto Foucault como Lynne Huffer, a partir do trabalho dele,
fazem: o surgimento da figura do homossexual é o surgimento de um objecto de
estudo científico redutível à verdade epistemológica da sua homossexualidade.
Reparem: objecto de estudo. Uma boa
parte do movimento LGBTQI desde então tem-se preocupado, justamente, com
quebrar esta objectificação dos
afectos, desejos, comportamentos.
A quebra desta objectificação entre outras finalidades, tem
o objecto de poder criar sujeitos de
desejo, prazer, sexo. E isso está ligado à noção de responsabilidade pessoal. Não
no sentido do velho debate de “eu escolhi ser homossexual” versus “eu nasci
homossexual”, mas no sentido de se poder identificar, obter e utilizar autonomia na vida sexual e erótica /
afectiva.
Então, porque é que Pedro diz que “sofre de poliamor”?
Porque, se for uma doença, um padecimento, então ele não pode ser
responsabilizado pelos seus próprios actos. Se for algo que lhe aconteceu, e
não que ele faz acontecer, a culpa
não é dele (soa tão cristão, isto, não soa?).
Ora, como o poliamor é uma daquelas raras identidades cuja
génese não passou por uma
patologização prévia, então há agora quem tente patologizar esta identidade, de
forma a, mais uma vez, poder objectificar-se a si ou a outrxs, removendo qualquer
complexidade ética e colocando-se a salvo da responsabilidade que daí adviria.
O problema é que o poliamor é uma forma de não-monogamia responsável. Portanto,
não. Pedro não sofre de poliamor.
Não é possível sofrer-se de poliamor – os afectos não são patologias, e a
responsabilidade não é descartável. Mas mesmo que fosse possível, ele
continuaria a estar ‘de fora’ – ao que parece, a parte da honestidade não o
afecta.