que me agarra tão cheio da sua enorme vontade. Nós devolvemo-nos mutuamente, mediante os braços e pernas um do outro. Vem carregado dos seus medos, tal como eu, sempre a tentar superar. Ele coloca-me à vontade para ser eu mesma - está tão cheio de amor para me dar. Ele é um lugar seguro e não vale a pena representar. Depois cai nos seus próprios papeis, que tu tentas rasgar, exactamente como se abre uma prenda de natal. Tu sabes, que por bonito que seja o embrulho, é por baixo que está o presente, assim como o futuro.
Homens: por vezes fecham-se dentro do seu papel, nos seus limites que os protegem tão mal, que os protegem enquanto os consomem . E tu vês aquele fogo a arder por dentro e não lhe podes chegar. Transformam os sonhos em cinzas enquanto tu carregas baldes de água para chegar onde eles não deixam. Não confiam que tenhas tanto para lhes dar. E acabas virando as costas e justificando por mil e uma razões que não consegues ali estar. E acabas a denegrir a sua imagem, porque senão não os consegues largar.
Esse homem, que vinha tão cheio da sua vontade de ser agarrado - e que não era uma coisa estúpida, nem neurótica -, era um homem que falava da linguística, das galáxias, da história do mundo, como quem recita poemas de amor e cosmogonia. Ele disse-me, no meio da água, "Gostava de dormir contigo" e não deitou foguetes, não fez nenhum floreado, não exibiu nenhum paso doble ou florete à minha frente. Pediu-me para dormir com ele e eu disse "Em troca de quê?" e ele respondeu "Prazer" e eu disse "Não chega" - como se o prazer fosse uma coisa simples e automática. "Eu faço-te isso em troca do teu coração, do pôr ao nascer do sol", mas não acreditei que ele pagasse o preço e fiquei à espera que viesse para me enganar. Mas quando o vi chegar, com vinte anos a menos nos olhos, perdido aquele tom grave e sério da voz da personagem a cumprir e suavemente envolvendo-me, duvidei: "Trouxeste o que te pedi?". "Vim inteiro", respondeu.
Veio o homem inteiro para dormir comigo e depositou aos meus pés o preço acordado, do pôr ao nascer do sol. Como explicar? É assim como uma miúda mergulhar nas profundezas do mar da polinésia e vir de lá saída com uma pérola nos dentes. Este homem inteiro, cheio da sua preocupação em trair uma mulher que obviamente amava, mas com a qual já não conseguia dormir e que tão só queria ser beijado e agarrado de novo - tu não acreditas numa beleza assim. Tu não acreditas na beleza de um homem até que ele te deposita o coração aos pés.
Dormimos a noite inteira e a coisa não funcionou. A máquina não funcionou. Porque um homem não é nenhuma máquina. Um homem é apenas um homem, sujeito das suas imperfeições, esperanças, medos e ansiedades, tal como eu. Era um homem acagaçado, tal como eu. E trazendo apenas o seu coração fez-me o melhor minete do mundo, ou pelo menos top 5.
Homens feios, inseguros, cheios da sua vontade de ser amados são os melhores amantes. Homens bonitos, demasiadamente desejados, são maus na cama. E homens-máquina, bem… Desses nunca conheci nenhum, embora demasiadas vezes tenham vindo ter comigo, tentando convencer-me do bom desempenho do papel.
Eu digo "Tenho medo". Ele diz "Eu também" e é a partir daí que nos tornamos humanos e que vale tudo. Tu dás-lhe tudo o que tens para lhe dar. Um homem que deposita o coração aos teus pés, contra a sua ideia de homem-máquina e que está tão para lá desse teatrinho ridículo dos papeis: então que se foda tudo, porque não há nada que justifique a minha vida mais do que a potencialidade metafísica da sua pele contra a minha. Tudo o resto vale nada.
"Acorda, amor, tens de ir embora. Os galos já estão a cantar"- abracei o meu amante sabendo que não lhe voltaria a tocar. Tanto amor, tanto amor; só amor, que não ia dar. Foi na lua cheia de Agosto. Ninguém soube e eu estou agora aqui a contar, porque a beleza nunca foi a mais no mundo para que se pudesse ocultar.
Homens do meu coração: dispam-se completamente se tiverem a coragem de tal, porque eu amo-vos à proporção e não tenho por isso um pingo de vergonha na cara, já que nenhumas palavras seriam suficientes para descrever a felicidade que partilham comigo. Homens-máquina, homens de aspiração maquinal: que direi? Vós que na vossa superpotência germinais este belo mundo desprovido de ideal, reiterando as velhas ordens predatórias costumeiras e exangues dos vossos pais, sem questionar, só assinar por baixo, só fechar os olhos, só encolher os ombros, justificando a vossa falta de coragem e de valor com expressões medíocres do vosso poderzinho que nada constrói e - ó expressão última de imbecilidade e cobardia - se congratula por fim em boicotar os caminhos que outros tentam com esforço desenhar, a minha felicidade é ver-vos cair como qualquer ditadorzinho a quem o futuro arrastou na corrente da vossa arrogância e soberba de quem não deixa a vida passar. Os outros, todos os outros, armados da sua gentileza e aspiração a um mundo melhor, por esses é que vale a pena lutar.
O meu amante regressou na manhã seguinte, dizendo: "Construí uma jangada no lago!" E mantinha aquele olhar de puto que fazem os homens felizes. Mas não havia futuro, o sol já ia alto. Disse-lhe adeus e vi-o tristemente regressar ao peso da sua provecta idade. Dissesse-me ele para voltar atrás e guardar o sol - que fosse noite para sempre - e eu o teria feito, sem hesitar.
Marquesa do Sado