Foi há uma semana que, na sequência de uma conversa via Facebook, Manuel Damas (presidente da CASA) decidiu utilizar o seu programa no Porto Canal (cujo tema já antes tinha sido definido como sendo "poliamor", para essa semana) para, à falta de melhor termo, avacalhar. Que é como quem diz: falou-se pouco (e mal) de poliamor, mas falou-se bastante de mim, das Panteras Rosa, bem como de outras pessoas que andam metidas no activismo.
Não vou pôr-me aqui a desmontar os argumentos simplistas do M.D. (quando se ataca alguém pela forma como anda vestido, já se está a raspar o fundo do barril) porque isso seria aborrecido (para vós e para mim). Mas vou aproveitar a questão para fazer um pouco de meta-análise a algumas coisas que por lá se ouviram, e que julgo serem dignas disso.
Primeira questão - tamanho.
A ideia está repetida até à exaustão que xs poliamorosxs são meia dúzia de gatxs pingadxs que por aqui andam, numa coisa que não tem visibilidade nem credibilidade. Mas a realidade permite-se discordar. Está neste momento, nos EUA, a ser discutido o fim do Defense of Marriage Act e, como não podia deixar de ser, o poliamor está a ser mencionado (explicitamente) como um dos grandes perigos caso se cometa o inominável crime de deixar as pessoas do mesmo sexo casarem entre si (alerta de ironia para quem está a dormir) - por virtude de um argumento slippery slope, "se fazemos X, vamos acabar com Y; logo, não podemos fazer X". No Canadá, a coisa está e tem estado nos tribunais, e mobilizado bastante atenção, criando uma espécie de movimento de avalanche de workshops e reconhecimento social. Nada disto é típico de um tema que, supostamente, só diz respeito a meia dúzia de pessoas... Indirectamente, a oposição ao poliamor (e, já agora, a quaisquer outras formas de não-monogamia consensual e responsável, ou a outras sexualidades ainda menos mainstream) é também a oposição ao avanço dos direitos civis em contexto geral - porque se estão a fornecer argumentos e força às pessoas que supostamente queremos evitar.
Segunda questão - identidade.
Foi atirada a ideia de que o poliamor não é uma identidade. Que é apenas um comportamento relacional ("como a violência doméstica" - que exemplo tão isento, não é?). Mas, agora perguntam vocês, afinal o que é uma identidade? Vamos simplificar: uma identidade é uma coisa com a qual nos identificamos. Algo que dizemos que somos. É um conjunto de atitudes, crenças, valores, padrões morais, hábitos - que são socialmente construídos em interacção connosco. Assim, ser do Rio Ave é uma identidade, ser mulher é uma identidade, ser homossexual é uma identidade e, espanto dos espantos, ser poliamorosx é uma identidade. A sério, isto não é ciência de foguetões. E não me venham com a coisa das identidades essenciais que nunca se mudam e já nascem connosco, porque senão eu zango-me e vou fazer queixinhas à Lisa Diamond.
Terceira questão - amor ou virar mesmo o disco.
Amor... Ah, o amor... essa coisa inefável, indefinível, incomportável... [som de disco riscado].
Alto lá com isso. O "amor" é, como tudo o resto, socialmente e culturalmente variável. Não se ama aqui da mesma maneira que se ama ali. É possível até historiografar a forma como amamos (ou amámos?). O amor, e as relações afectivas, são historicamente variáveis, culturalmente variáveis, espacialmente variáveis... acham que se ama da mesma maneira em todo o mundo, que se vivem as famílias da maneira como nós as vivemos, em todo o mundo? Então acham muito mal... O amor, como qualquer palavra, é polissémico. Muda. E, para não estar a repetir o último link, vai continuar a mudar. Se há coisa que me incomoda é aquele pessoal que acha que pode chegar e dizer: "O Amor Verdadeiro (TM) é assim, assim e assado" [tradução: heterossexual, monogâmico e monoamoroso]. Ou então, o pessoal que tira um dos assins ou assados, mas quer deixar o resto. Porque convém. Porque a cabecinha não dá para mais. Porque não vêem a parvoíce de fazer de conta que as coisas mudam mas não mudam... enfim.
Questão agregada
Porque é que o discurso do M.D. é tão significativo que lhe dedico mais um post? Precisamente pela sua falta de originalidade. O discurso do M.D. é importante na medida em que representa uma determinada postura mental, e não um trabalho de reflexão pessoal criativo. O M.D., com a sua postura contra o poliamor, representa a luta pela institucionalização normativa de algumas afectividades e algumas sexualidades, dentro de um quadro de trabalho essencialista, que defende um conjunto restrito de valores ao mesmo tempo que pretende deixar outros elementos (inseparáveis) intocados. Só que não dá para escolher. A vida não funciona assim - se nós questionamos umas coisas e não outras, eventualmente alguém vai dar pela contradição, pela incoerência, e começar a fazer força nesse sentido.
O M.D. afirma-se herói dos fracos e oprimidos, canta a Ode da Ascensão contra os poderes instituídos - mas o M.D. não quer eliminar a lógica dos poderes instituídos, quer ocupar a posição dos poderes instituídos (ou, vá lá, fazer parte do panteão). M.D. quer um lugar na História, e repetirá para isso o mesmo discurso de quem o queria deixar fora da História. Ele próprio afirma a importância da seriedade, da sobriedade. M.D. deseja comandar respeito, admiração.
M.D. esquece-se que a seriedade e a sobriedade vêm da estrutura patriarcal, machista, homofóbica, misógina e hierarquizante. (Ou não se esquece, e apenas não se importa.) M.D. quer dar cabo dessa estrutura - mas só de um bocadinho...
Vou-me armar em Nostradamus: não. serve. de. nada. A sério. Não serve de nada. As coisas mudam. E ou o pessoal faz parte da mudança, ou o pessoal acaba como este fulano. O paradigma está a mudar. A Gayle Rubin (porra, que eu farto-me de a citar!) já dizia que precisamos de uma nova ética sexual, baseada na forma como as pessoas se tratam mutuamente, e não baseada nos actos que praticam. E sabem que mais? Há quem ande aí a lutar por isso. Não importa o número de pagens que se tem à volta, a repetir o mesmo discurso em eco... Porque, carxs leitorxs, eu vou fundir a Emma Goldman e a Beatriz Preciado e dizer que o sistema patriarcal se caga todo quando se lhe apresenta uma revolução à queer, com dança, festa e sem sobriedade nenhuma. Ou então sou eu que me cago para ele.
Porque o sistema patriarcal É o sistema homofóbico É o sistema capitalista É o sistema racial É o sistema falogocêntrico É o sistema monogâmico É o sistema nacionalista É o sistema de género/sexo binarista... e É uma grande cagada.
Agora, inspirado por uma amiga, deixo-vos uma reflexão profunda, que requer, no entanto, algumas mudanças de apelido...
Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do "Século" a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta "Júlio Dantas" e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas... E limonadas Dantas- Magnésia.
E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.
- "Manifesto Anti-Dantas", José Almada de Negreiros