sexta-feira, 22 de julho de 2011

Vira o disco

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...e toca o mesmo.

Foi há uma semana que, na sequência de uma conversa via Facebook, Manuel Damas (presidente da CASA) decidiu utilizar o seu programa no Porto Canal (cujo tema já antes tinha sido definido como sendo "poliamor", para essa semana) para, à falta de melhor termo, avacalhar. Que é como quem diz: falou-se pouco (e mal) de poliamor, mas falou-se bastante de mim, das Panteras Rosa, bem como de outras pessoas que andam metidas no activismo.

Não vou pôr-me aqui a desmontar os argumentos simplistas do M.D. (quando se ataca alguém pela forma como anda vestido, já se está a raspar o fundo do barril) porque isso seria aborrecido (para vós e para mim). Mas vou aproveitar a questão para fazer um pouco de meta-análise a algumas coisas que por lá se ouviram, e que julgo serem dignas disso.

Primeira questão - tamanho.
A ideia está repetida até à exaustão que xs poliamorosxs são meia dúzia de gatxs pingadxs que por aqui andam, numa coisa que não tem visibilidade nem credibilidade. Mas a realidade permite-se discordar. Está neste momento, nos EUA, a ser discutido o fim do Defense of Marriage Act e, como não podia deixar de ser, o poliamor está a ser mencionado (explicitamente) como um dos grandes perigos caso se cometa o inominável crime de deixar as pessoas do mesmo sexo casarem entre si (alerta de ironia para quem está a dormir) - por virtude de um argumento slippery slope, "se fazemos X, vamos acabar com Y; logo, não podemos fazer X". No Canadá, a coisa está e tem estado nos tribunais, e mobilizado bastante atenção, criando uma espécie de movimento de avalanche de workshops e reconhecimento social. Nada disto é típico de um tema que, supostamente, só diz respeito a meia dúzia de pessoas... Indirectamente, a oposição ao poliamor (e, já agora, a quaisquer outras formas de não-monogamia consensual e responsável, ou a outras sexualidades ainda menos mainstream) é também a oposição ao avanço dos direitos civis em contexto geral - porque se estão a fornecer argumentos e força às pessoas que supostamente queremos evitar.

Segunda questão - identidade.
Foi atirada a ideia de que o poliamor não é uma identidade. Que é apenas um comportamento relacional ("como a violência doméstica" - que exemplo tão isento, não é?). Mas, agora perguntam vocês, afinal o que é uma identidade? Vamos simplificar: uma identidade é uma coisa com a qual nos identificamos. Algo que dizemos que somos. É um conjunto de atitudes, crenças, valores, padrões morais, hábitos - que são socialmente construídos em interacção connosco. Assim, ser do Rio Ave é uma identidade, ser mulher é uma identidade, ser homossexual é uma identidade e, espanto dos espantos, ser poliamorosx é uma identidade. A sério, isto não é ciência de foguetões. E não me venham com a coisa das identidades essenciais que nunca se mudam e já nascem connosco, porque senão eu zango-me e vou fazer queixinhas à Lisa Diamond.

Terceira questão - amor ou virar mesmo o disco.
Amor... Ah, o amor... essa coisa inefável, indefinível, incomportável... [som de disco riscado].
Alto lá com isso. O "amor" é, como tudo o resto, socialmente e culturalmente variável. Não se ama aqui da mesma maneira que se ama ali. É possível até historiografar a forma como amamos (ou amámos?). O amor, e as relações afectivas, são historicamente variáveis, culturalmente variáveis, espacialmente variáveis... acham que se ama da mesma maneira em todo o mundo, que se vivem as famílias da maneira como nós as vivemos, em todo o mundo? Então acham muito mal... O amor, como qualquer palavra, é polissémico. Muda. E, para não estar a repetir o último link, vai continuar a mudar. Se há coisa que me incomoda é aquele pessoal que acha que pode chegar e dizer: "O Amor Verdadeiro (TM) é assim, assim e assado" [tradução: heterossexual, monogâmico e monoamoroso]. Ou então, o pessoal que tira um dos assins ou assados, mas quer deixar o resto. Porque convém. Porque a cabecinha não dá para mais. Porque não vêem a parvoíce de fazer de conta que as coisas mudam mas não mudam... enfim.

Questão agregada
Porque é que o discurso do M.D. é tão significativo que lhe dedico mais um post? Precisamente pela sua falta de originalidade. O discurso do M.D. é importante na medida em que representa uma determinada postura mental, e não um trabalho de reflexão pessoal criativo. O M.D., com a sua postura contra o poliamor, representa a luta pela institucionalização normativa de algumas afectividades e algumas sexualidades, dentro de um quadro de trabalho essencialista, que defende um conjunto restrito de valores ao mesmo tempo que pretende deixar outros elementos (inseparáveis) intocados. Só que não dá para escolher. A vida não funciona assim - se nós questionamos umas coisas e não outras, eventualmente alguém vai dar pela contradição, pela incoerência, e começar a fazer força nesse sentido.
O M.D. afirma-se herói dos fracos e oprimidos, canta a Ode da Ascensão contra os poderes instituídos - mas o M.D. não quer eliminar a lógica dos poderes instituídos, quer ocupar a posição dos poderes instituídos (ou, vá lá, fazer parte do panteão). M.D. quer um lugar na História, e repetirá para isso o mesmo discurso de quem o queria deixar fora da História. Ele próprio afirma a importância da seriedade, da sobriedade. M.D. deseja comandar respeito, admiração.
M.D. esquece-se que a seriedade e a sobriedade vêm da estrutura patriarcal, machista, homofóbica, misógina e hierarquizante. (Ou não se esquece, e apenas não se importa.) M.D. quer dar cabo dessa estrutura - mas só de um bocadinho...

Vou-me armar em Nostradamus: não. serve. de. nada. A sério. Não serve de nada. As coisas mudam. E ou o pessoal faz parte da mudança, ou o pessoal acaba como este fulano. O paradigma está a mudar. A Gayle Rubin (porra, que eu farto-me de a citar!) já dizia que precisamos de uma nova ética sexual, baseada na forma como as pessoas se tratam mutuamente, e não baseada nos actos que praticam. E sabem que mais? Há quem ande aí a lutar por isso. Não importa o número de pagens que se tem à volta, a repetir o mesmo discurso em eco... Porque, carxs leitorxs, eu vou fundir a Emma Goldman e a Beatriz Preciado e dizer que o sistema patriarcal se caga todo quando se lhe apresenta uma revolução à queer, com dança, festa e sem sobriedade nenhuma. Ou então sou eu que me cago para ele.

Porque o sistema patriarcal É o sistema homofóbico É o sistema capitalista É o sistema racial É o sistema falogocêntrico É o sistema monogâmico É o sistema nacionalista É o sistema de género/sexo binarista... e É uma grande cagada.


Agora, inspirado por uma amiga, deixo-vos uma reflexão profunda, que requer, no entanto, algumas mudanças de apelido...

Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do "Século" a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta "Júlio Dantas" e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas... E limonadas Dantas- Magnésia.

E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.

- "Manifesto Anti-Dantas", José Almada de Negreiros

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Manifesto das duas gajas com um gajo - Parte 1

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É certo e sabido que quando estamos ocupados a fazer o contrário do que a maioria faz, a remar contra a maré, a recusar fazer o que toda a gente faz só porque toda a gente o faz, quando estamos, precisamente, ocupados a viver vidas sem guião preparado, a fazer coisas que não sabemos se mais alguém fez, a sermos visíveis nas nossas identidades e opções in your face e, activamente, a não nos preocuparmos sequer com isso, é certo e sabido, dizia eu, que nos vai cair o carmo e a trindade em cima (perdoem-me a expressão característica) na forma de críticas infundadas, estereótipos formatados, bocas foleiras, comentários paternalistas e tons condescendentes. Quando para além disto tudo ainda somos mulheres, lésbicas, feministas, queer, kinky, poliamorosas e jovens, a coisa tende a complicar-se gravemente.

Ora eu sou tudo isto, e tenho pouca paciência para silêncios, ou o chamado "comer e calar", aquela virtude para a qual as mulheres foram sempre treinadas e na obtenção da qual eu falhei grande e desastrosamente. Com esta minha incapacidade vem uma profunda alergia a que me tentem formatar, encaixar, confinar, limitar, circunscrever, encerrar em bonitas caixinhas que constituem os alicerces fundamentais da sociedade patriarcal, heteromononormativa. Aparentemente a caixinha mulher torna-me um ser humano a ter em menor conta do que aqueles que se encontram na caixinha homem. Como lésbica sou invisível. Como feminista sou ignorada. Como queer sou desconhecida. Como kinky sou excluída. Como jovem sou desconsiderada. E como poli sou estereotipada. E porquê? Porque, por alguma razão obscura, quando ando com o meu companheiro e a companheira do meu companheiro o que as pessoas vêm é - adivinhem só - um gajo com duas gajas. É curioso que nem o número - o facto de sermos duas gajas e portanto maioria, de um certo ponto de vista - nos traz mais visibilidade positiva. Pelo contrário. O gajo é o sujeito, as gajas as coitadas. O gajo é o garanhão que come duas. As gajas deixam-se ir. O gajo é que se diverte, as gajas suportam ou sofrem. O gajo fica a ganhar, as gajas são, no mínimo, desgraçadas. Curiosamente, no meio disto tudo, as gajas desaparecem. E toda a gente se parece esquecer que estão ali, também, duas gajas com um gajo. Mas isto seria totalmente contra-intuitivo - primeiro porque as gajas não são sujeitos, mas objectos decorativos. Depois porque as gajas nunca escolheriam uma coisa destas. E por último, porque provavelmente as gajas não devem ser pessoas com vontade, inteligência, determinação, livre arbítrio e capacidade de decisão. Porque raio quereriam estar elas com o mesmo gajo?

Pois é, sendo eu uma das gajas, devo dizer que me divirto. Estou com quem quero, como quero e bem entendo, disponho da minha vida, das minhas escolhas. Sou livre - a nível relacional, afectivo, sexual, pessoal. Sou livre de me afirmar lésbica e me apaixonar por um homem. Sou livre de me afirmar poli e andar de mão dada a três na rua. Sou livre para ser queer e rebentar com as caixas onde me querem meter.

Marcha dxs Galdérixs – II

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Quero repegar no assunto da semana passada, como disse que ia fazer, avançando para o segundo ponto. Relembro:

2 – os ataques imparáveis, prévios e posteriores, nacionais e internacionais, ao conceito da marcha, ao que ela defende, à sua forma de execução; que vêm não apenas da ala tipicamente patriarcal, mas também, e especialmente, de várias alas de alguns feminismos

Existem vários exemplos de blogs onde se podem ler críticas feministas à SlutWalk (ou a SlutWalks específicas) – um famoso exemplo é este. Um exemplo ao nível de Portugal (ou seja, sem sofisticação, base conceptual ou desenvolvimento de ideias para além do insulto barato) seria este. [Tomem um momento para ler estes ou outros textos, a bem da contextualização.]

Estas críticas tendem a concentrar-se em dois aspectos fundamentais:

a) A palavra “slut” é irrecuperável, irreclamável, inapropriável – enfim, intocável.

b) A apresentação de mulheres vestidas de forma provocadora, sexy, erótica, etc., vem apenas servir para alimentar a visão objectificante das mulheres, e apresenta-las de acordo com um padrão heterossexista e patriarcal de desejabilidade.

Cito do primeiro exemplo:
“This is a word that has been used to hurt, shame, and abuse me. It is a word that has been used to hurt, shame, and abuse women everywhere. In order to silence them, control them, punish them and, of course, blame them. […]This word, as I have mentioned, has been used in a myriad of ways to hurt me. I have been called a slut for having sex, for not having sex, and for being coerced into sex. I have been called a slut by partners, by friends, and by acquaintances. I wish that this word did not hold the power it does. I wish that it had not been used to hurt and abuse me. But it has. There is no erasing that.”

Quanto a isto, em nada posso ou quero discordar. Mas o mesmo pode ou não aplicar-se à palavra “gay”, “fufa”, “queer”? E, no entanto, estas palavras foram repescadas por vários movimentos, em vários países, e são agora consideradas como fonte de empowerment para milhões de pessoas quando, anos antes, ninguém (dentro dos mesmos movimentos) as usava sequer. Ora, se a palavra “slut” não pode seguir o mesmo caminho, então terá que existir alguma característica da palavra que sirva para a distinguir das outras. Vejamos: “gay” é uma palavra violenta, usada para causar dano e excluir grupos de pessoas, com uma longa tradição de uso para fins discriminatórios, e tem como base um padrão normativo de género e sexualidade. A mesma descrição se pode aplicar à palavra “slut”. Também pertencem à mesma categoria gramatical… Ou seja, a diferença, para todos os efeitos, não existe.

Outra citação:
“I may well be, in theory and in life, the ‘ally’ of a self-described ‘slut’. But I am not about to call her one.”

Aqui, eu confesso-me perdido. A autora do texto recusa-se, portanto, a utilizar uma auto-identificação quando se dirige a outra pessoa? Qual é a retórica aqui? Negar-lhe o direito de ser reconhecida pela palavra que a própria pessoa terá escolhido para si? Isso é respeito pela identidade de alguém?... Não me parece, francamente. Mas parece-me haver aqui um silêncio forçado sobre a palavra, em que se recusa a sua utilização mesmo quando essa é a vontade da pessoa assim determinada, mesmo quando isso é feito com um propósito político. Há ainda um outro ponto a fazer sobre esta primeira parte da questão – quais são as consequências de afirmar uma palavra como sendo irrecuperável, inapropriável?
Bem, se a palavra-ferramenta de agressão que está ao serviço da cultura machista e patriarcal não pode ser de forma nenhuma re-significada (e não existe reapropriação sem re-significação), então isso quer dizer que, no caso da palavra “slut”, essa mesma cultura patriarcal tem um poder absoluto e inalienável sobre uma determinada ferramenta de agressão, e nada podemos fazer sobre isso. Podemos tentar silenciar ou banir o uso da palavra, claro, mas isso não iria contra a regra de que só a estrutura social patriarcal teria então o poder de dominar esta palavra.
Dizer que a palavra “slut” (ou outra palavra qualquer, já agora) é inapropriável, é reforçar e essencializar o domínio de uma cultura sobre essa mesma palavra – constitui em si um acto de submissão, ainda que limitado.
Por fim, acho que me cabe dizer que existe mais um motivo pelo qual a palavra “slut” é, de facto, apropriável: porque é uma palavra! As palavras não existem e não operam fora da sua apropriação por alguém – nem têm um ‘escudo Actimel’ que as proteja de outras interpretações, leituras, subversões, ironias, etc.

Passo agora ao ponto b), que trata da objectificação das mulheres quando elas afirmam a sua autonomia sexual, quando saem para a rua vestidas de forma sexy.
Outra citação, daqui:
“In the post 9/11 climate, the focus on a particular version of sex(y)-positive feminism runs the risk of further marginalizing Muslim women’s movements who are hugely impacted by the racist ‘reasonable accommodation’ debate and state policies against the niqab. […]I find that the term disproportionately impacts women of colour and poor women in order to reinforce their status as inherently dirty and second-class, and hence more rape-able.”

E daqui:
“Sluwalk does, in many ways, resemble the same kind of privileged, individualist, ‘anything goes so long as it’s my choice‘ feminism which argues that prostitution is simply a choice like any other (or ‘work’ like any other kind of work), that objectification can be empowering as long as we are choosing to objectify ourselves […]”

Sinto aqui um receio incrível de abordar questões que tenham que ver com sexualidades explícitas. E embora pessoas de etnias não-caucasianas e de religiões não-ocidentais sejam, de facto, especialmente vitimizadas por uma série de questões em torno da “sluttiness”, não deixa de ser verdade que elas parecem ser aqui convocadas para justificar um discurso que, depois, acaba por não as pensar directamente, acaba por não sugerir possibilidades de entrosamento e acção. Note-se que, por exemplo, um qualquer feminismo que afirme que a prostituição possa ser uma questão de escolha (e há que reparar que, nestes textos, tudo é tratado de forma absoluta, em função de um tudo/nada) será, automaticamente, conotado com pós-feminismo. Isto, quando a autora passa o texto todo a falar mal de quem fala mal do feminismo radical.

Mais: a possibilidade de as mulheres escolherem torna-se, aqui, um possível problema que tem que ser resolvido – ao que parece, é o corpo teórico do feminismo que tem que ditar às mulheres o que elas podem ou não podem fazer com os seus corpos.
Isto é também visível no exemplo português que dei acima. A figura da miúda transmontana é tratada como se o sistema que a oprime especificamente fosse, de alguma forma, separado ou alheio às questões debatidas e feitas relevar na SlutWalk. É também um texto que, contra si, reinstaura o insulto como insulto (“Galdéria é a tua tia, pá”) e articula-o de forma machista e que, ao dizer que o Manifesto da SlutWalk Lisboa não explicita o “não” da galdéria, falha a realização de que a galdéria é toda aquela pessoa que está em todas aquelas situações descritas no manifesto (e em muitas outras). Porque a galderice, como insulto, não surge das práticas, mas dos investimentos dados, cognitivamente, às práticas!

Outra questão: é aqui usada a palavra “objectificar” várias vezes, e de a SlutWalk representar uma forma de objectificação das mulheres pelas mulheres. No meu entendimento da “objectificação”, o sujeito não se pode objectificar (embora possa dar-se à objectificação, embora possa exteriorizar-se e, a partir desse ponto, objectificar-se) e, ao mesmo tempo, manter a sua vontade. Objectificação tem que ver com perda de vontade. Porém, a SlutWalk é a afirmação inequívoca da vontade, a afirmação inequívoca de que, independentemente dos comportamentos (que, percepcionados patriarcalmente, transformam qualquer mulher em “slut”, ou ameaçam fazê-lo), “NÃO É NÃO”.

Os corpos das pessoas que foram desfilar para a SlutWalk serviram para demonstrar aquilo a que o agressor NÃO tem direito. Aquilo que, ainda que veja (e vê apenas porque o deixaram ver) não está legitimado em fazer o que quer que seja. A objectificação é o oposto deste processo. As “sluts” desfilaram em vários estados de nudez (desde o estado quase-nu até ao estado está-calor-com-tanta-roupa) e com indumentárias também não-ocidentais. Porque todas estão em risco de ser consideradas “sluts”.

Ora, se todas elas estão em risco de ser consideradas “sluts”, isso quer dizer que existe uma dicotomia entre ser-se “slut” e “não-slut”. Essa dicotomia é, obviamente, mantida pelo status quo machista predominante. O que acontece se descolarmos obviamente a ideia de “slut” de qualquer padrão de comportamento? O que acontece se, ironicamente, procedermos à auto-atribuição do conceito de “slut” a qualquer mulher, a qualquer pessoa? A dicotomia é, por um lado, revelada na sua artificialidade e arbitrariedade e, por outro, fundamentalmente anulada. Querer fugir da palavra “slut” (independentemente da origem social, do comportamento sexual, da indumentária!) é arriscar a manutenção da dicotomia “slut” / “não-slut” – dicotomia essa que serviu para policiar e regulamentar os comportamentos sexuais, os comportamentos de vestuário e que, regressando ao fundamento da SlutWalk, que serviu tantas vezes para legitimar actos incomportáveis de violência, como a violação.

“Entonces me di cuenta que no hay nada que moleste más a hombres y mujeres machistas que una mujer presumiendo, y enorgulleciéndose, de lo puta que es. Sencillamente les jode. Y POR ALGO SERÁ.”
- Manifiesto Puta, Beatriz Espejo

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Marcha dxs Galdérixs - I

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No passado Sábado teve lugar, em Lisboa, a primeira SlutWalk Portuguesa. Podem questionar-se sobre o porquê de vir falar disto aqui, num blog sobre poliamor – considero o assunto particularmente relevante na medida em que, dentro do poliamor que está envolvido com aquilo que é conhecido como “promiscuidade” ou simplesmente não-monogamia, as pessoas poliamorosas são também, por definição, sluts. Interessa muito pouco, de resto, para as representações estereotipadas, que muitas pessoas pratiquem até formas de poliamor que nada tenham de não-monogâmico (no que toca a práticas sexuais) ou sequer de sexual – a promiscuidade, ou a galderice, a sluttiness não se encontra nas práticas específicas, mas sim na representação dessas práticas, na sua constituição como desvio face a um padrão. Padrão esse que, obviamente, não deixa de ser idealizado – não aconselho a ninguém pôr as mãos no fogo pela “pureza” sexual dos homens que o discurso patriarcal elogia e protege ou entroniza. A luta da SlutWalk não é tanto por formas específicas de vestir ou comportar, mas pelo fim de um padrão duplo, que diferencia entre o sujeito-mulher e o sujeito-homem. Pelo fim da violência de género (e, dentro desta, especificamente, pela violência sexual) que é constituída por este mesmo duplo padrão.



Duas coisas saltam à vista, na SlutWalk Lisboa, e que nos devem levar a reflectir profundamente sobre temas que ultrapassam até o âmbito da marcha em si:
1 – a fraquíssima comparência, face a marchas em vários outros países, e que não pode ser explicada (apenas) por diferenças na densidade populacional nas cidades anfitriãs de várias outras Marchas ao redor do Mundo;
2 – os ataques imparáveis, prévios e posteriores, nacionais e internacionais, ao conceito da marcha, ao que ela defende, à sua forma de execução; que vêm não apenas da ala tipicamente patriarcal, mas também, e especialmente, de várias alas de alguns feminismos.

Quanto ao primeiro ponto: não estou profundamente por dentro da forma como as marchas noutras cidades foram organizadas, embora esteja por dentro da forma como a marcha de Lisboa foi organizada (profundamente ou não, já não me sinto capaz de dizer). Porém, do que sei e do que li de outras marchas (e que, inclusivamente, constituiu um dos pontos de crítica), boa parte das organizações foram feitas fora dos típicos círculos de activismo feminista, foram feitas de forma extremamente descentralizada, pelo passa-palavra e por pessoas que, à partida, não iriam organizar uma marcha (algo semelhante à forma como o movimento da manifestação de 12 de Março começou).
Em Lisboa, o mesmo não é verdade. O movimento começou a organizar-se da forma menos hierárquica e autoritária que é possível executar dentro das limitações da Internet – e nisso foi um exemplo brilhante de organização pluralista, preocupada com a representação dos vários cruzamentos de realidades de discriminação e violência, um exemplo de variedade e argumentação feita entre pessoas, com respeito e consideração, de uma forma que é, ao mesmo tempo, enternecedora e rara. Ainda assim, e obviamente, houve um fórum de eleição (poderá não haver, sequer?) principalmente dominado por pessoas feministas (mulheres, outros géneros e homens, inclusive) e activistas. Que isto não constitua, de todo, uma crítica negativa! Este trabalho é fundamental, necessário. Mas não deixa de levantar questões: será que este pendor activista, académico (ao contrário do que circulava pelas más línguas, muitas das pessoas envolvidas têm efectivamente cursos superiores e/ou longos anos de activismo e de pensamento sobre questões relacionadas com o feminismo e outras áreas conexas) poderá ter afastado pessoas da marcha? Será que a SlutWalk lisboeta sofreu de um certo efeito de alergia externa a esta clara ligação com o activismo feminista em Portugal? O que afastou, afinal de contas, tanta gente desta marcha, e porque não conseguiu ela atrair a atenção daquele segmento da população que, tal como nos outros países, até foge do feminismo mas se conseguiu organizar em torno desta causa específica?
Sem dúvida que Portugal está especialmente atrasado face a questões de activismo político, de feminismo (do peso que a palavra comporta e, até, do quão ignorante o ‘cidadão comum’ parece ser sobre o que é o feminismo – ou o que são os feminismos, na verdade). Mas estará assim tão atrasado, será a diferença assim tão grande que nos outros países ela tenha sido grandemente anulada nos outros países mas não aqui? Honestamente, parece-me uma explicação por demais simplista, que reduz a um factor apenas (mau-grado ser este um factor complexo) esta diferença. É possível que se tenha assistido a um acidental “fechamento” sobre a comunidade activista, não um fechamento planeado ou sequer desejado, não um fechamento intencional, ou que sirva sequer para apontar dedos a seja quem for (volto a dizer, a organização do evento foi do mais horizontal que se consegue arranjar!), mas ainda assim um fechamento. As ‘mesmas’ ideias circularam pelas mesmas pessoas e a organização/dinamização do evento poderá ter-se transformado num discurso de dentro para dentro. No entanto, isto é apenas uma possível análise ou antes, uma hipótese – não estou sequer certo de ter razão, mas gostaria de deixar lançada a discussão, que acho absolutamente fundamental.
Um ponto secundário a este foi um certo processo de ‘invenção da roda’ – não houve, a um nível significativo, intercâmbio de experiências e inputs entre as várias organizações das várias marchas a nível internacional e a organização da Marcha de Lisboa – por conseguinte, arriscamo-nos a que muito do trabalho feito tenha sido um trabalho de re-criação ao invés de um trabalho de acumulação e refinamento das experiências passadas, que poderá eventualmente ter significado um empobrecimento parcial das reflexões e atitudes tidas durante todo este tempo – ou, dito de outra forma, um não-enriquecimento extra dessas mesmas reflexões e atitudes, em que se perde o contexto e trabalho previamente levado a cabo. Repito – isto não pretende ser uma crítica negativa à organização ou ao movimento, mas um momento (pessoal) de debriefing, de olhar para os resultados e para o processo retrospectivamente, reflexivamente, e procurar pontos a melhorar.

E, porque o texto já vai longo, o resto fica para a semana…