sexta-feira, 16 de julho de 2010

Da contratualização - I

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"[...] Uma análise crítica da diferença de género e de sexo, produto do contrato social heterocêntrico, cujas performatividades normativas têm sido inscritas nos corpos como verdades biológicas (Judith Butler, 2001). [...] A contra-sexualidade deseja substituir este contrato social que chamamos de Natureza por um contrato contra-sexual. Sob a égide do contrato contra-sexual, os corpos reconhecem-se a si mesmos não como homens ou mulheres, mas como corpos falantes, e reconhecem os outros também como corpos falantes.
[...]
As práticas de Sadismo e Masoquismo, bem como a criação de pactos contratuais que regulam os papéis de submissão e dominação, tornaram manifestas as estruturas eróticas de poder subjacentes ao contrato que a heterossexualidade impôs como natural.
[...]
ARTIGO 3º
Para a invalidação do sistema de reprodução heterocentrado, a sociedade contra-sexual exige:
- a abolição do contrato matrimonial e de todos os seus sucedâneos liberais [...], que perpetuam a naturalização dos papéis sexuais. Nenhum contrato sexual poderá ter o Estado como testemunha." - Manifiesto contra-sexual, Beatriz Preciado
[tradução minha]

Poderá parecer estranho que, à primeira vista, alguém que venha reclamar a "abolição do contrato matrimonial e de todos os seus sucedâneos liberais" peça, ao mesmo tempo, a criação de um "contrato contra-sexual". (Aos mais desatentos, chamo a atenção para que contra-sexual não é a mesma coisa que anti-sexual.)

Porém, como o próprio excerto aponta, o problema da contratualização não é a existência do contrato em si, mas a forma como opera esse contrato. No fundo, a palavra-chave deste pequeno excerto é "naturalização"/"Natureza".

A naturalização de comportamentos, posições, valores e poderes leva-nos para uma interiorização do contrato que nos faz esquecê-lo. O esquecimento do contrato não é uma anulação do mesmo, ou uma dissipação dos seus efeitos. Antes pelo contrário, o esquecimento/naturalização do contrato reforçam o seu valor operativo, e fazem mais eficientemente funcionar os dispositivos (para ir roubar o conceito ao Michel Foucault) que estão por debaixo de si.

5 comentários:

Anónimo disse...

Estive aqui duas horas a escrever um lindo comentário bem fundamentado, com toda a referência bibliográfica e no final isto deu um estouro e o meu comentário foi para o céu dos comentários!!!

Basicamente dizia o seguinte:
Este texto é algo denso para quem não está dentro dos conceitos.
O que são exactamente "corpos falantes", sendo que corpos hetero-monogâmicos não são necessariamente mudos?
Custa-me entender que sado-maso seja um produto de um modelo hetero, pois acho um fenómeno muito transversal. Sado-maso não me parece ser "Quem manda aqui sou eu/Estou aqui para te servir". Vendo assim as coisas corremos riscos de um simplismo que não nos permite mudar uma pêvea do que temos de mudar.
A mudança é primeiro minha, depois cultural. Complicado? Muito!
A parte do Foucault não entendi nada. Interiorizar uma coisa e ela deixa de ser operacional? c'est quoi ça?
Gosto de contratos, que estabelecem claramente deveres e obrigações. Prescindir de contratos é um pouco optimista demais para mim, sendo que a revisão do mesmo é que tem de ser equacionada, mas aí pareci encontrar-me no texto, não estou certa.
É difícil comentar condignamente porque é um texto de alguém que trabalha sobre isto e portanto há aqui conceitos que dominas, mas não estão claros para mim, sendo assim, não posso esticar-me muito a dizer seja o que for.
Só isto, sou suficientemente vivida para ter verificado que mudando modelos de relacionamento muitas vezes os padrões permanecem, o que me leva a crer que qualquer "doutrina" é válida desde que o seja "a qualidade" dos indivíduos. O contrário também é verificável. Não vamos demonizar o padrão mono-hetero, porque há quem com ele funcione bem. Nem vamos santificar outros modelos, pensando resolver os nossos problemas enquanto indivíduos que se relacionam. Não creio que seja este o caso, mas deixo só de alerta.

Marquesa do Sado

Daniel Cardoso disse...

Marquesa:

Todos excelentes comentários e é por isso mesmo que este primeiro post foi isso mesmo, o primeiro de vários.

Quanto à questão sado-maso, chamo a atenção para um pequeno problema de interpretação. A autora não diz que sado-maso é o produto de um modelo hetero, mas sim que as práticas contratuais de sado-maso permitem reflectir sobre as práticas contratuais "invisíveis", internalizadas, que decorrem das relações heteronormativas. Do mesmo modo, e indo de encontro ao que diz sobre "a qualidade dos indivíduos", o que aqui se critica é a normatividade, não a heterossexualidade.

Espero ter resolvido estas dúvidas; as outras ficarão para o "fazer render o peixe".

:-)

Anónimo disse...

Daniel,

Quer então dizer que a pratica sado-maso (que não é a minha especialidade, note-se) resulta de um modelo normativo em si. A autora refere-se ao aspecto "dominante/subjugante" do modelo: ou te encaixas ou desapareces. Acaso a norma fosse poly-homo, seria igualmente normativo e sado-maso e creio ter agora entendido, sendo que a existência adjacente das palavras me induziu, estranhamente, em erro... "Ajoelha-te e obedece-me" é realmente aquilo que creio estar no antípoda do amor, independentemente do formato que melhor convém a cada um.

De resto, é evidente que não respondeste a nada, mas pronto, cá te encontrarei na lota. :)

Marquesa

Daniel Cardoso disse...

Marquesa,

Não, repara: a prática sado-maso resulta de um contrato em que, idealmente, todas as possibilidades estão clara e explicitamente definidas, e em que as pessoas envolvidas o fazem da forma como convém a todas elas, tendo como principal preocupação o carácter consensual de todas as práticas. Esse cuidadoso planeamento e contratualização das práticas de prazer e dor que se encontra dentro da prática sado-maso é, por assim dizer, uma ferramenta analítica que nos permite olhar para as relações hetero/mono-normativas e aí encontrar os seus próprios contratos disfarçados. Para usar o teu exemplo, não convém esquecer que, do outro lado de quem diz "Ajoelha-te e obedece-me", está também alguém que diz "Ordena-me que me ajoelhe e te obedeça".

:)

Anónimo disse...

"todas as possibilidades estão clara e explicitamente definidas" sim, em teoria, e se se partir do principio que se usa a aproximacao SSC (safe sane and consensual) e que na pratica é impossivel de seguir, pois ninguem consegue prever todas as possibilidades. mas mesmo na teoria, nem toda a gente segue SSC. Ver RACK, e ver relacoes 24/7 em que se define o dominio em que a TPE toma lugar, mas nao exactamente o como e até que ponto. Mas penso que entendo o que queres dizer...