ou, De como as pessoas poliamorosas estão fartas de perspectivas pseudo-“críticas” do mono-mundo
Já chega. Estamos fartxs.
Sabem o que acontece cada vez que uma pessoa poliamorosa, com uma perspectiva queer-feminista, reflecte sobre a mono-normatividade? Pois é: há (quase) sempre alguém que surge, muito rapidamente [haverá plantão?; haverá vigília?], a fazer uma de duas coisas (ou, mais comum, ambas ao mesmo tempo):
- A defesa da legitimidade da monogamia;
- A crítica ao poliamor e a outras formas de não-monogamias consensuais.
Isto cansa, porra.
Senão vejamos.
«Deixem a monogamia em paz, que chatxs!»
Está uma pessoa muito entretida com os seus botões, a reflectir sobre um sistema multi-milenar de opressão sistemática de sexo/género e de reprodução de papéis de género binários e normativos, e assim que abre a boca para falar logo alguém (que é legível ou se apresenta mesmo como mono) tem que vir dizer qualquer coisa do estilo “Ai que me estão a oprimir!”.
E a base desta brilhante argumentação é a de que todas as pessoas devem ser livres de escolher a estrutura relacional que mais se adapta ao seu projecto de vida e à forma como sentem e se sentem realizadas.
… Porque, como toda a gente sabe, “normatividade” quer dizer que todas as pessoas têm todas as escolhas possíveis colocadas à sua frente, sem constrangimentos legais, institucionais, sociais. Certo? … Certo? ... Ceeeeeertooooo?
E também quer dizer que lá no fundo, no fundo, todxs queremos ser felizes e basta escolhermos o que nos faz feliz e está tudo bem, não é? Porque a noção do que faz feliz e do que é a felicidade é perfeitamente pessoal e subjectiva e igual para todxs, certo?
Ou então não.
E vai daí, temos que perder novamente tempo - perder, porque este tipo de diálogos geralmente viram monólogos - a explicar, por exemplo, que a monogamia é menos uma “estrutura relacional” e mais um sistema político. Que a monogamia está associada ao surgimento, estabelecimento e fortalecimento do Estado-Nação capitalista. Que a hetero-monogamia se encaixa numa rede que pretende preventivamente erradicar a dissidência sexual lésbica. Que a monogamia colabora activamente para a manutenção do statu quo patriarcal.
E que não, não é simplesmente uma escolha subjectiva - «porque é assim que sou feliz e cada um tem direito a ser feliz como quer!» - ideia bonita mas que falha por não ter qualquer conexão com a realidade em que são socialmente vistos como felizes apenas os casais hetero, mono, casadxs ou juntos de forma semelhante, de classe média, brancxs, com casa, carro, 1,2 filhxs. E são miseravelmente infelizes ou falhadxs as pessoas sozinhas, as pessoas que não querem ter filhxs, as pessoas que têm sexo com toda a gente, as pessoas que não querem ter sexo com ninguém, as pessoas não-monogâmicas (tudo isto piora se forem mulheres e/ou minorias étnicas e sociais).
Que, como diz Brigitte Vasallo no primeiro link do anterior parágrafo, a postura “«cada um que faça o que quiser» é, na prática, «que cada um faça o que conseguir»”. E, numa sociedade hetero-mono-normativa, consegue-se realmente muito pouco e a muito custo.
Vêm geralmente depois os argumentos do excepcionalismo - “Mas eu sou diferente!”, que é como quem diz, «a minha monogamia não é igual à monogamia da vizinha».
Nós sabemos, nós sabemos: não estais habituadxs a que falar da vossa monogamia cause desconforto. Azar. Notícia de Última Hora: nós estávamos a falar de mono-normatividade e, espanto dos espantos!, não estamos interessadxs em saber como a tua monogamia é extra-diferente, extra-especial, baixa em heteropatriarcado e rica em realização pessoal. Tens uma monogamia dessas? Eh pá, que fixe!... Para ti. We really don’t care. Até porque a realização pessoal que retiras dela não apaga a tua performance pública (política!) de monogamia, nem o efeito de reforço de privilégio que isso tem (e que escapa largamente ao teu controlo).
«Isso do poliamor também tem muitos problemas!»
Então há bocadinho a tua monogamia era versão Extra-XPTO-Plus-Gold-Limited-Edition. Mas agora “o poliamor” - Sagrada Cona das Generalizações Abusivas! - já tem muitos problemas. [Notem, por favor, que novamente a conversa foi desviada para longe de qualquer crítica possível à mono-normatividade.] Claro que a implicação, subentendida, é que o nosso poliamor tem problemas. Mas não a tua monogamia. Não, isso nunca, céus!...
E então, a partir deste momento, vem o desfiar do argumentário… Que “o poliamor” serve é para beneficiar homens cisgénero, que o “poliamor” é usado como forma de manter as mulheres submissas e validar a falta de compromisso de homens cisgénero, que “o poliamor” não implica qualquer discriminação, que “o poliamor” é tão passível de ser ‘escolhido’ como a monogamia, que “o poliamor” não tem nada a ver com feminismo, e por aí em diante… Já para não falar naquela tendência irritante até mais não de achar que “poliamor” é sinónimo de todas as formas de não-monogamia consensual, e portanto tratá-las todas como um conjunto amorfo de categorias intermutáveis.
No fundo, descobrimos assim, para nossa infinita surpresa, que não existe maior especialista em poliamor do que… pessoas monogâmicas (e, em menor grau, pessoas que, sendo não-monogâmicas, ainda assim não são poliamorosas).
Vá, vamos ser honestxs: não, o poliamor não é uma espécie de paraíso perfeito de liberdade pura e absoluta onde todos os males da sociedade se evaporam em fumo e se atinge o nirvana.
Mas… calma, que isto pode ser chocante para algumas pessoas… o raio das generalizações abusivas com “boas intenções de Cavaleirxs Brancxs” acaba a ser mais tóxico que muitas das supostas coisas que tão magnanimamente querem evitar!
Porque, Notícia de Última Hora - parte 2: existem mais que dois géneros; existem relações poliamorosas só com mulheres, e só com homens, e com pessoas não-binárias, e com pessoas trans*... que não apreciam nada mais uma camada de apagamento feita, alegadamente, por uma preocupação com a igualdade de género! Infantilizar ou apagar mulheres, pessoas não-binárias e trans* através de críticas generalistas, abstractas e desinformadas à sua vida não é aceitável.
Aliás, não vos devia fazer um bocado de comichão o facto de que, recentemente - e de uma forma que talvez não tinham ainda imaginado! - quem mais se queixa do poliamor são os homens? Porque, lembremo-nos disso, aquilo que o poliamor procura fazer é precisamente retirar o privilégio que os bio-gajos têm de poder ter várias relações sem ter que responder por isso!
E não, não nos esquecemos de termos dito que o poliamor não é perfeito. Aliás, até há várias pessoas a fazer uma leitura crítica de vários elementos do poliamor, com base em considerações sobre feminismo, pós-colonialismo, classe, e por aí em diante… Sabem quem?
Uma pequena pista: não são vocês. Não. São, na sua maioria, pessoas que têm experiência e reflexão feitas sobre a questão, que não se encontram a falar a partir de uma posição de privilégio e que, em todos esses casos, não se limitam a fazer generalizações sobre “o poliamor”. Identificam problemas concretos com dinâmicas específicas, com balizas bem demarcadas.
Ou então, quando se trata de comentar a história do poliamor, não disparatar, confundindo “poliamor” com “relações abertas” ou com outras formas de não-monogamia consensual (sim, existem mais!, não, não são todas iguais!, sim, tens mesmo de te calar e ir ler se não sabes a diferença!), esquecendo que, sim, o poliamor tem um forte cunho feminista e de crítica à desigualdade de género na sua base [O que não quer dizer que uma pessoa, por chamar “poliamorosa” à sua relação, vá logo ser o paradigma da igualdade de género, né?; porque não há fiscais do uso do termo]...
E mesmo quem tem alguma experiência em relacionamentos não-monogâmicos em sentido lato (desde relações abertas a swing), ainda assim faria melhor, achamos, em ver que a sua experiência particular pode não ser - e geralmente não é - a melhor para comentar outro paradigma relacional diferente. Embora alguém nessa situação não esteja simplesmente a reproduzir o privilégio monogâmico, ainda assim e por uma questão de solidariedade, convém que possamos reconhecer a diversidade de posturas e também as limitações que vêm com estarmos num estilo relacional e não noutro.
Vá, para resumir: estamos fartxs do [atenção à palavra desconhecida] monosplaining. Que é como quem diz: estamos fartxs de ter pessoas monogâmicas a julgarem-se especialistas em poliamor e outras não-monogamias. Estamos fartxs de pessoas monogâmicas a quererem ‘expor’ publicamente os ‘males’ “do poliamor” mas que não são capazes de escrever dez linhas, publicamente, sobre o papel normativo da monogamia como sistema político opressor.
Querem ser umas pessoas muito socialmente conscientes? Que bom!
Primeiro passo: desconstruam a vossa própria monogamia.
Segundo passo: ver o primeiro passo.
Quê?! Achavam que esta coisa do “desconstruir” era como nos menus de instalação de programas? Chega aos 100% e ‘tá feito?
Ouvimos dizer… que não é assim que funciona!
Depois disso, e depois de investigarem a fundo ou de passarem de facto pelas experiências de uma não-monogamia feminista e crítica, cá estaremos para ouvir e trabalhar com as vossas/nossas críticas. Até lá, preferimos ouvir as vozes (críticas!) de quem reflecte sobre as suas experiências de não-monogamia, e não os gritos que nos querem afogar a expressão crítica das estruturas macro-sociais que pendem sobre as cabeças de todxs.
Nota: Vamos aguardar para ver se os comentários a este nosso rant confirmam a existência do mesmo; uma espécie de versão poly da Lei de Lewis.
Inês Rôlo
Isabel Martinez
Rumpelstilzchenriel
Daniel Cardoso