terça-feira, 8 de outubro de 2013

Redefinir amizades, intimidades e sexo

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Esta madrugada pus-me a ler coisas um pouco ao calhas para ver se o sono vinha quando me deparei com um daqueles textos/conceitos que fazem instantaneamente click na cabeça: “relacionamentos queerplatónicos”.
O interessante desta ideia, e a razão pela qual tanto me cativou, é por finalmente conseguir ter um termo que aproxime ou resuma, de certa forma, algumas das ideias que já expus em posts anteriores, sobre o papel cruzado da sexualidade e da amizade.
Para mim, bem como para muitas outras pessoas, o poliamor não trata apenas de redefinir o número de pessoas com quem podemos ter relações românticas e/ou sexuais, mas também redefinir o que se entende por “amor”, abrindo as portas a vários tipos de amor, e à validação de relações de intimidade que possam contemplar variantes diferentes de amor – bem como à validação de intimidades que não passem necessariamente pelo amor (romântico ou de outros tipos) e se possam fundamentar em relações centralmente físicas e/ou centralmente emocionais mas com modulações que dão um passo ao lado do que geralmente entendemos por amor.

Por alguma razão, o pessoal em inglês chama a quem está neste tipo de relações, courgettes.
Como é costume em mim, acabo a ser atirado para algumas das coisas que Michel Foucault disse para melhor compreender os elementos envolvidos. Neste caso, fui repegar na entrevista “Amizade como Forma de Vida”, onde o autor comenta especificamente as relações entre homens em vários contextos institucionais e sociais e o quanto isso pode servir para um constante trabalho de reinvenção de uma ‘cultura gay’. Entrementes, ele oferece uma lindíssima definição de amizade nesse contexto: “A soma de todas as coisas através das quais podem dar prazer um ao outro”. Tal como é o caso das relações de camaradagem no exército, entre homens – tão espartilhadas, mas onde o amor também surge e sustenta os vínculos pessoais – também as construções contemporâneas de amizade parecem estranhamente espartilhadas, e os sentimentos amorosos (em sentido lato) tornados neutros, formulaicos, e fortemente a-corporais (não era também disso que a Adrienne Rich falava?). A resposta, para Foucault, seria então a existência de uma “inventividade especial para uma situação como a nossa e para esses sentimentos […]. Temos que escavar profundamente para mostrar como as coisas são historicamente contingentes, por razões tais e tais, inteligíveis mas não necessárias”.
As descrições de Foucault na entrevista são-me particularmente apelativas porque não precludem nem forçam a existência de práticas sexuais como parte dessa amizade, deixando antes um campo aberto onde, ainda assim, a criação de vínculos potencialmente disruptivos para o sistema afectivo vigente passa necessariamente por uma ligação psico-emocional entre pessoas dispostas a realizar trabalho relacional.
É por causa da centralidade do papel da disrupção que não me surpreende onde acabei a encontrar este termo, a relação queerplatónica – em recursos dedicados à assexualidade e ao arromantismo; grupos de pessoas praticamente invisíveis pelo simples facto de não se reverem na ideia de que toda a gente deve amar romanticamente e/ou sentir-se sexualmente atraída, e que a ausência destes elementos é, de alguma forma, patológica.

A Aromantics Wiki define esta relação como sendo “não-romântica mas ao mesmo tempo envolvendo uma ligação emocional intensa para além do que a maior parte das pessoas consideram actualmente como sendo normal numa amizade”, fazendo o cruzamento possível com todas as formas de orientação de género, sexual, de identidade sexual, relacional, etc.
No tumblr Aromantic Aardvark há uma explicação mais aprofundada que, para quem escreveu o post, implica “a quebra das narrativas. Implica não haver regras. Implica fazer, no fundo, o que quer que seja que a pessoa se sinta confortável a fazer. […] Queerplatónico quer dizer criar a própria definição, dizer ‘nem platónico nem romântico encaixam’ […] e fazer uma salada russa daquilo com que as pessoas envolvidas se sentem confortáveis”. Isto pode incluir ou não elementos mais sexuais, pode incluir ou não esta ou aquela forma de carinho e intimidade, consoante as pessoas em questão, consoante o momento em questão – mas tendo sempre como substrato uma noção de compromisso, de laço estreitamente firmado, intenso, que frequentemente corre o risco de ser confundido (especialmente por terceiras pessoas) com algo romântico ou criticável.
A mera existência deste tipo de relações perturba fundamentalmente o sistema relacional mononormativo (dados os ‘erros’ de leitura do que estas relações são, e a centralidade da ideia de compromisso, normalmente associada apenas às relações românticas sexuais), e encontra no poliamor e outras não-monogamias consensuais aliados naturais – mesmo nos casos em que o sexo esteja totalmente excluído da relação. Ao mesmo tempo, ao permitir o estabelecimento de formas relacionais a la carte, serve para quebrar os ditames normativos de disciplina corporal sobre quem podemos beijar ou não, tocar ou não, amar ou não, comprometermo-nos ou não (não sei se já notaram que basta alguém não estar num namoro para se dizer que a pessoa não está “comprometida”; como se os outros compromissos fossem secundários).


Reconheço que o termo talvez não seja o melhor: afinal, a ideia de uma relação platónica não é a ideia de uma relação não-romântica, mas a ideia de uma relação casta e não-sexual, e tenho dúvidas sobre se simplesmente adicionar a possibilidade de uma componente sexual ao mesmo tempo é suficiente para se considerar que se está a queerizar o termo “amor platónico”. (Vai daí que convido quem me lê a sugerir mais e melhores termos!!).

Para já, fico contente por ter uma expressão e uma série de links que posso mostrar, e que facilitarão a comunicação futura para explicar a outras pessoas o que sinto/quero/gosto. Algo que, nos últimos 9 anos de poly, não tem sido nada, nada fácil.